Wagner Carmo[1]
Do ponto de vista histórico, é comum que façamos remissão à Europa como o berço da civilização e, não menos comum, também, é o fato de que hodiernamente utilizamos a Europa e o seu modo de vida como exemplo de civilidade..
A questão, entretanto, é saber até que ponto o continente Europeu poderá ser utilizado como sinônimo de civilidade.
Inicialmente, para que se evite confusão, civilidade será definida como o conjunto de formalidades, de palavras e atos que os cidadãos adotam entre si para demonstrar mútuo respeito e consideração; boas maneiras, cortesia, polidez[2].
Depois, o presente ensaio não considera o processo de exploração em desfavor dos países africanos, asiáticos e americanos e sua incidência no desenvolvimento da sociedade europeia. A ideia é escrever apenas sobre o modelo de civilização e sua recente transformação.
Kant explica em seu livro “O que é o iluminismo” que a diferença entre a civilização Europeia e as demais civilizações estava no fato de que a Europa permitia aos cidadãos saírem da infância e alcançar a idade adulta. É provável que o filósofo alemão estivesse sintetizando a capacidade da Europa em garantir uma civilização com autonomia em todos os níveis/etapas da vida, seja da política à cultura.
Foi a Europa o único espaço geográfico capaz de aliar liberdade e proteção social depois de atravessar os males da terra e dos homens. Por tal motivo, não é incomum encontrarmos os “eurocentristas”, pessoas que acreditam que, sob certos e determinados aspectos, a civilização europeia é superior a todas as outras.
A Europa, perpassados os diversos períodos históricos (dos impérios ao feudalismo; das grandes cruzadas à descoberta de “novos mundos” e das grandes revoluções técnicas e cientificas à guerra), inspirou a sociedade mundial a refletir sobre a liberdade e sobre a necessária segregação entre política e religião.
O iluminismo, dentre as diversas mudanças, trouxe, a partir do continente Europeu, o fim do estado teológico-político, permitindo o nascimento de um novo formato de organização do “estado”, de novas formas de “governo”, de um novo modelo de aplicação das leis e de uma nova forma de fazer “política”.
Foi possível ver, por exemplo, o nascimento da teoria da separação de poderes, posteriormente sistematizada com maestria pelos cientistas políticos norte-americanos; o surgimento do parlamento moderno, capaz legislar leis pelos e para os seres humanos, ao invés de derivá-las de textos apócrifos, sagrados ou oriundos de monarcas absolutistas moribundos e, por que não destacar a criação da União Europeia, um formado ousado de organização política, administrativa, econômica e de defesa (social e militar) que foi capaz de equilibrar os interesses nacionais sem afetar a soberania ou mesmo alterar a autonomia política e cultural dos países membros.
O modelo de sociedade europeia, rompendo com a imposição dos dogmas prevalentes no estado teocrático absoluto, à luz da ciência e do conhecimento, alcançou o que Luc Ferry[3] denomina de humanismo secular[4]. Foram os Europeus que, primariamente, forjaram a direito à liberdade de ir e vir, à liberdade de opinião, ao direito de contestação, ao direito a um julgamento justo, ao direito de propriedade, ao direito à educação, ao direito à saúde, ao direito à cultura e ao direito ao lazer, dentre outras garantias.
A filosofia europeia ultrapassou os limites geográficos e alcançou outras nações. Diversos países passaram a adotar/positivar em suas cartas constitucionais os direitos do homem e do cidadão, constituídos a partir da evolução dos direitos na Europa[5]. O Brasil, por exemplo, incorporou a filosofia de direitos europeia na Constituição Federal de 1988, em especial no art. 5º – dos direitos e garantias fundamentais.
Victor Hugo, quando escreveu “Os Miseráveis”, em 1860, não imaginava que nos séculos seguintes os cidadãos europeus teriam à disposição a plenitude de direitos sociais e políticos. As democracias europeias, inobstante a coexistência de guerras, depressões econômicas e epidemias, evoluíram de tal modo que entre os séculos XIX e XXI alcançaram:
- A plenitude dos direitos políticos (considerando sua origem com a revolução francesa em 1789 e a primeira declaração de direitos do homem). A marca registrada desta era está na consciência da imperiosa necessidade de pôr limites ao superpoder do Estado e de garantir a liberdade pessoal de tal forma que ninguém pode ser acusado, preso ou detido, senão nos casos determinados em lei.
- A importância dos direitos sociais, econômicos e culturais como vetores para o desenvolvimento de uma sociedade justa e igualitária; exigindo uma ação/intervenção do Estado em favor da coletividade.
- O reconhecimento do direito à fraternidade e à solidariedade; relacionados ao desenvolvimento ou progresso; ao meio ambiente equilibrado e saudável; à autodeterminação dos povos, ao direito a propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade.
Ao fim, mesmo o europeu mais presunçoso e otimista não imaginava ser possível em pouco tempo e em meio a tantos desafios constituir uma sociedade pacifica, próspera, plural, livre e com justiça social.
Contudo, a Europa constituída e consolidada parece escapar às mãos dos europeus; parece que a sociedade europeia regrediu ao estágio do século XVIII, sem controle do curso dos próximos anos e sem ter o que fazer. As mudanças de ordem política, econômica e cultural afetam as estruturas da sociedade europeia de forma inimaginável.
Há na Europa um processo de degeneração da política à cultura que tem afetado diretamente os direitos arduamente conquistados, cedendo lugar à retomada de discursos de ódio; elegendo governos com características de ditaduras totalitárias; alterando o ordenamento jurídico para incluir leis ultranacionalistas/ufanias, além do fortalecimento do crescimento de partidos de índole neonazistas e xenofóbicos.
Tudo indica que a principal característica da Europa de hoje é não saber que tipo de sociedade foi construída por seus antepassados e muito menos o motivo pelo qual a sociedade foi construída. Por razões estruturais, essenciais e de modo algum insignificante, a sociedade europeia parece haver perdido o sentido histórico da luta por uma sociedade justa, igual, fraterna e livre. A Europa que se vê parece não encontrar sentido no projeto de civilização até aqui construído.
Luc Furry em “A inovação destruidora” atrela o obscurantismo da Europa a fatores decorrentes do sistema capitalista, que promove um sucessivo processo de inovação sem sentido, ou cujo sentido é mercadológico e não humano. Dentre os destaques da desestabilização da sociedade europeia, a globalização é citada como responsável por aniquilar o plano econômico, filosófico e moral; por aniquilar o sentido de ser de uma sociedade, seja qual for a sociedade.
Para o filosofo francês, no capitalismo globalizado, as sociedades não possuem um fim, um designo ou um projeto; com exceção da amoralidade de obrigar tudo e todos ao processo de seleção de Darwin. Vivemos, no seio da globalização, um inexorável crescimento da impotência pública, vista a olho nu pelo fracasso de líderes e de suas políticas nacionais.
As políticas nacionais, seja de qual for a natureza, giram no vazio e não possuem efeito direto na vida dos cidadãos. Os líderes nacionais, por seu turno, independente do processo de corrupção ou de estupidez, estão constantemente submetidos a um processo de fragmentação de suas reputações por meio de um sistema de comunicação assustadoramente sem limites.
Paradoxalmente, a globalização torna os modos de governança nacionais cada vez mais inoperantes e, ao mesmo tempo, alimenta e potencializa os discursos nacionalistas, assim como de outras formas de soberanias associadas aos estremos.
A inoperância das políticas públicas suscita, no seio da sociedade, um modelo de soberania que tende a voltar ao estágio de um “estado-nação soberano”, cuja consolidação perpassa pelo recrudescimento e/ou revisão de políticas econômicas, sociais, culturais e migratórias.
A crise econômica e cultural vira campo fértil para o surgimento de líderes e governos de oportunidade, cuja pauta pode ser reduzida à garantia de emprego, revisão da legislação de imigração e o afastamento do establishment. O Brexit no Reino Unido é um típico exemplo de política neonacionalista de preservação de empregos e renda.
Outros países, mesmo sem romper com a União Europeia, também enfrentam fortes turbulências e pressões de grupos que desejam a revisão das políticas públicas à luz dos movimentos supostamente nacionalistas/soberanos.
Constata-se, dentre as múltiplas análises possíveis para tentar explicar a degeneração da sociedade europeia, que o cidadão mediano parece estar responsabilizando a política imigratória pela falta de emprego e pelos problemas de ordem assistencial – saúde, educação e aposentadoria.
Atônitos, os europeus não sabem como retomar o controle sobre o desenvolvimento da sociedade em meio à globalização. Ao contrário, os europeus parecem estar sob dois terríveis dilemas – como evitar que toda a gloria escape e por qual motivo é necessário fazer tamanho esforço.
[1][1] Por Wagner Carmo. Escritor. Poeta. Advogado e Professor.
[2] Disponível em https://languages.oup.com/google-dictionary-pt/
[3] A inovação destruidora: ensaio sobre a lógica das sociedades modernas.
[4] Visão de mundo que se contrapõe à religião, por conta de seu compromisso com o uso da razão crítica, em vez da fé, na busca de respostas para as mais importantes questões humanas.
[5] Norberto Bobbio, filosofo político e historiador italiano foi um dos responsáveis pela sistematização dos direitos fundamentais. Um dos livros mais famosos entre os acadêmicos brasileiros é “A Era dos Direitos”.
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