*Erly dos Anjos
Ficamos surpresos com a entrada e o domínio do crime organizado no, supostamente, pacífico Equador – principalmente das cenas de violência explicitas num programa de TV ao vivo – e do estado deplorável de prisões em massa de suspeitos do tráfico de drogas e de milicianos.
As comparações com a nossa situação, já existente aqui, de grupos como os do Comando Vermelho (CV) e do Primeiro Comando da Capital (PCC), foram quase que automáticos. As explicações, em geral, se encaixavam melhor para os casos do México e da Colômbia, que já passaram pelos estágios evolutivos de organização criminosas, do mundo das drogas ilícitas e de seus impactos deletérios na sociedade.
Apesar das comparações, como no caso do combate estilo “guerra às drogas” e do caos das prisões, há especificidades que precisam ser levadas em conta para se ter uma visão mais crítica da complexidade inerente à problemática e se pensar em como enfrentá-la.
Apesar das tendências estruturantes nestes países, existem peculiaridades em cada área geográfica que a inteligência na elaboração de planos de segurança pública precisa estar atenta.
Temos em elaboração deste plano pelo Governo federal a oportunidade de esboçar programas mais efetivos, eficientes e eficazes. Não dá mais para repetir fórmulas ultrapassadas, somente de caráter repressivo e sem estratégias inteligentes, preventivas, sustentáveis e de mitigações da questão, já que não há solução cabal da violência na sociedade.
Acabo de ler o livro “A Fé e o Fuzil”, de Bruno Paes Manso (2023) – que alarga conhecimentos anteriores, em “A República das Milícias” (2020) – em que conecta a natureza e aspectos da criminalidade violenta à espinhosa questão da religião.
Mais notadamente, neste último lançamento o autor versa sobre o crescimento exponencial das denominações religiosas evangélicas com a violência no Brasil de hoje. Para isso, o jornalista, com treinamento em pesquisa social, sai da “bolha” da redação de jornais e vai ouvir estórias “de gente de carne e osso” sobre seu envolvimento no mundo do crime e de sua crença religiosa. O que fizeram e como se dá o processo de transformação de comportamentos e de consciência, na passagem do mundo do crime para o da crença.
É nesse processo de autotransformação de consciência e de comportamento, como um recado do céu, que se alia a ensinamentos e interpretação da Bíblia em que ex-bandidos viram crentes. Há vários exemplos dessa virada no jornalismo policial.
Outra fonte de inspiração para se pensar sobre a elaboração de um plano de segurança que tenha efetividade social pode ser encontrado nos filmes de Hector Babenco dos anos 70! Como “Lúcio Flavio, O Passageiro da Agonia” (1977), entre outros excelentes, que acabo de assistir.
Aliás, quando assisti antes não teve o mesmo impacto. Agora vejo que esse cineasta, o argentino e naturalizado brasileiro, desvenda o sistema implantado há tempos no Rio de Janeiro, de corrupção policial via pagamento de propinas, que tem relevância aos dias de hoje.
Dois delegados que competiam pelo butim dos roubos de bancos davam em troca cobertura para que Lúcio Flavio (Reginaldo Faria) não fosse preso e condenado. Isso todos sabiam, inclusive a imprensa, que escolhia romantizar o bandido na espetacularização da notícia.
Por que não se combateu esta matriz da violência urbana no seu nascedouro? Sabemos que muitos, inclusive políticos, se beneficiam destes arranjos, como assistimos no noticiário atual. É verdade que muita coisa mudou na organização do crime, que não é mais localizada e não respeita mais fronteiras.
A transnacionalização da violência bate às portas. O uso e investimentos em novas tecnologias na criminalidade deixa o Estado “a ver navios”. As conexões entre o poder econômico-empresarial e políticos são hoje cada vez mais estreitas e quase que impossível de se desatarem. Mas um plano de segurança pública nacional não pode se descuidar da metamorfose desta nova realidade. Uma realidade que tem sua gênese na formação social e política determinada que uma vez construída pode ser descontruída com estratégias e inteligência.
Os exemplos mencionados da Fé e Fuzil assim como Lúcio Flávio mostram que é preciso ouvir e desvendar mais esta nova realidade, a sua trajetória, conexões entre cotidianos e estruturas, próximas e afastadas. Uma questão de método, monitoramento, avaliação e sem dúvida vontade política.
Não basta somente a qualificação para o cargo, mas competência no enfrentamento de uma questão que é prioridade nacional e regional. Vamos aguardar!
*O autor é sociólogo, com especialização em violência, e professor aposentado da Ufes
Comente este post