Erly Euzébio dos Anjos
Quando vemos na TV sobre a invasão de gangues armadas no Haiti, matando indiscriminadamente, invadindo o palácio, o aeroporto, o comércio, se apoderando de tudo à vista e sem a proteção das forças da segurança pública, temos a sensação de impotência.
Talvez porque sabemos que este não é um cenário fictício; pode ocorrer aqui também. Tive a experiência, na porta da garagem da minha casa, de um assalto e um tiro na perna, quando nenhum policial estava disponível por estarem aquartelados!
A insegurança é, portanto, factível e está se avizinhando. Se não houver precaução com base em conhecimento a priori do crime já organizado e estabelecido, como no Rio de Janeiro e na maioria das cidades brasileiras.
Sabemos que investigações pormenorizadas e uso estratégico da Inteligência policial e ações pontuais são importantes, mas não dão conta da complexidade da violência hoje. A repressão em si, num médio e a longo prazo, são medidas insustentáveis, ou como dizem: é como “enxugar gelo”.
Gostei do uso do termo “ecossistema do crime”, para se referir a uma abordagem que articula a multiplicidade de fatores. Uns próximos, outros secundários, uns micros outros macroestruturantes, mas que, olhados como um todo, têm maior efetividade.
Ecossistema é um termo utilizado para definir um grupo de seres que habitam em um determinado local, as relações entre eles, e interação destas comunidades com o ambiente em que vivem. Vem da ecologia e, apesar das críticas nas ciências sociais, ilustra bem a compreensão da interação entre atores e agentes do crime.
É o caso das milícias, das facções, do tráfico de armas, de drogas ilícitas, dos matadores de aluguel e dos políticos, que podem ser vistos como partes integrantes de um sistema operante no submundo do crime. Tem como motivação principal a captura de territórios e a cobrança de taxas ilícitas de bens e de serviços com a proteção e favores políticos. Isso “tudo e misturado” se aflora agora nas investigações que vêm mostrar o que dizem os cantores e compositores Cazuza (“Brasil, mostra a tua cara…”) e Caetano (“o Haiti é aqui”).
Concordo que, com a denúncia dos mandantes da morte de Marielle, temos chance de constatar o emaranhamento nas teias que dão forma a um complexo enigmático da violência urbana, persistente há décadas. O “arreglo”, ou a cobrança de taxas entre traficantes, facções criminosas e autoridades não é uma novidade.
Alguns mencionam pagamentos ilícitos à guarda pessoal (Gregório Fortunato) de Getúlio Vargas. Outros da permissão ao cantor Michael Jackson para gravar um clipe no morro da Dona Marta no Rio, pelo diretor de cinema Spike Lee. A verdade é que se não houver um desmonte estrutural destas mazelas não haverá chance de se efetivar políticas públicas (já tentadas no Rio com as Unidades de Pacificação Social no governo Garotinho, como uma grande promessa!), não há chance de se implantar um genuíno Plano de Segurança Pública no país.
Comecei o artigo chamando atenção para o caso do Haiti que impressiona o quadro caótico em que se encontra. Com o impedimento do presidente eleito de retornar ao país, a desmobilização das forças de segurança e o comando de toda área habitada por mais de 200 gangues armadas.
Ao redigir os primeiros parágrafos tive notícias da prisão dos alegados mandantes do crime da vereadora Marielle, no Rio de Janeiro. Como todos, fiquei horas me informando sobre o que ocorreu e as possíveis ligações do crime com a realidade local. O Haiti é mesmo aqui, pensei.
O economista e escritor Jake Johnson, de uma entrevista a Folha de São Paulo (15/03/24), diz que “os problemas que vemos no Haiti foram perpetuados pelas organizações internacionais”. São consequências de acúmulo de intervenções militares (que nos inclui) e de ajudas humanitárias (EUA e a ONU) fracassadas, continua ele e faz uma diferença entre “Estado dependente de ajuda” e um “Estado falido” que não pode se autogovernar.
Somente uma minoria extremamente pequena e oligárquica é beneficiada, porque tem negócios na cadeia de abastecimento internacional. O contrato social foi quebrado, a população local não está presente, pois tudo foi terceirizado.
E apresenta uma proposta direta, humilde e humana que considero bombástica: os haitianos podem apresentar soluções a seus próprios problemas de sobrevivência, como fizeram no passado! “…se os haitianos se unirem e criarem uma nova estrutura governamental, qualquer ajuda externa será tal como eles a definirem”. Intervenções externas minaram o Estado e criaram condições para as milícias.
Se tivermos que implantar um verdadeiro Plano de Segurança Pública Nacional, conforme já dissemos em outras ocasiões, não pode dispensar a participação ativa e constante da população diretamente afetada justamente pelas instâncias de insegurança criadas e mantidas. Ações efetivas e sustentáveis não podem vir de cima para baixo nem de fora para dentro.
*Erly Euzébio dos Anjos – Sociólogo, Professor aposentado da Ufes
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