Os antigos integrantes do velho “Partidão”, como é chamado o histórico Partido Comunista Brasileiro, que está comemorando 100 anos, estão a lamentar a morte de Idivarci Martins, um de seus quadros mais ativos .
“Francisquense da velha guarda”, comentou o prefeito Enivaldo dos Anjos, que teve Idivarci muito próximo a si durante o governo de Albuino Azeredo (PDT), entre 1991-94, e também em sua incipiente candidatura a governador em 1994, que abortou para eleger-se a deputado estadual e apoiar a eleição de Vitor Buaiz (PT) contra Cabo Camata.
Idivarci morreu nesta terça-feira (1) pela manhã, após dura batalha contra um câncer, que começou no estômago e alcançou o fígado. Na semana passada, operou, mas não resistiu. Como mostra a foto acima, estava otimista. (José Caldas, da Redação)
Leia, a seguir, o texto de um velho camarada.
Luiz Carlos Azedo
O cabeludo atrás do Ulysses e do Amaral Peixoto é Idivarci Martins, meu velho camarada, que faleceu nesta madrugada, no Hospital Metropolitano, em Vitória, no Espírito Santo. Recuperava-se de uma grande cirurgia no estômago, mas não resistiu. Soube da notícia por seu primogênito, Igor. Era capixaba, mas conheci Idivarci em Duque de Caxias (RJ), quando eu era repórter dos jornais O Dia e a Notícia na sucursal da Baixada Fluminense, meu primeiro emprego desde fevereiro de 1969.
Escrevia uma coluna para o jornal A Notícia, com notícias sobre as cidades da região, quando fui procurado por ele, para divulgar seu trabalho. Pretendia organizar um grande evento cultural, com outro amigo comum, Guaraci Rodrigues, então um jovem advogado, por meio de uma pequena empresa de eventos chamada GTA (Grupo de Trabalhos Avulsos). Era o Dia da Criação, nome inspirado na canção de Vinicius de Moraes, que obviamente seria realizado num sábado, no estádio municipal da cidade, mas cujo formado era de um grande happining, inspirado em Woodstock, o marco da música eletrônica, do movimento hippie, da paz e do amor.
No governo de Emílio Garrastazu Médice, a ditadura militar estava no auge da repressão à oposição. Com um grupo de agitadores culturais, entre os quais Marinaldo Guimarães, empresário do Módulo 1000, Leonis, o “Leão”, e Ademir Lemos, a ambição de Idivarci em fazer um grande evento de massas naquela cidade improvável, mal-afamada por causa do ex-deputado Tenório Cavalcanti, do brutal 6º. Batalhão da Polícia Militar fluminense e da presença do antigo “Esquadrão da Morte”, parecia um delírio. E era, no bom sentido.
Dia da Criação
Sábado, 14 de outubro de 1972. Sucesso total: milhares de pessoas lotavam o gramado e as arquibancadas do Estado Municipal, para ver Sá, Rodrix & Guarabyra, Milton Nascimento & Som Imaginário, O Terço, Os Brazões, Karma, Sociedade Anônima, Módulo 1000, O Grão, Diana & Stul, Liverpool, Jards Macalé, A Gosma e Faia, entre outros. Alguns desses artistas se tornariam astros da nossa música popular, outros sequer deixaram registro gravado”.
Foi o primeiro festival ao ar livre do país voltado ao público jovem, depois dos festivais da canção dos anos 1960; depois vieram os lendários encontros de Guarapari (ES) e Iacanga (SP). Ao redor do gramado, foram montadas tendas de lona para a produção, camarins de músicos e venda e troca de roupas e artes plásticas, além de refrigerantes e sanduíches. O anúncio divulgou até um roteiro de como as pessoas de fora poderiam chegar ao local do evento, cuja entrada custaria apenas Cr$ 5 (Cinco cruzeiros), após desembarcar do trem ou na rodoviária local. Havia policiais militares na segurança e uma ambulância, para atender uma emergência. Mesmo assim, a fumaça subiu e não houve incidentes. Só love.
O prefeito de Duque de Caxias era um interventor federal, o general linha-dura Carlos Marciano de Medeiros, pois a cidade fora considerada “área de segurança nacional”. Mas a secretaria de Cultura, Hilda do Carmo Siqueira, irmã de um ex-prefeito eleito pelo voto direto, deu uma força para a rapaziada. Foi um espanto, tudo aconteceu em plena vigência do Ato Institucional n° 5, assinado por Artur da Costa e Silva no final de 1968 e que vigorou por 10 anos. Entre outros atos de força, o AI-5 permitiu o fechamento do Congresso Nacional por quase um ano.
O evento fora divulgado no “boca a boca”, com exceção da nota na coluna da baixada que eu escrevia no A Notícia e de uma chamada no Caderno B do Jornal do Brasil. Em vez de 12 horas, como previsto, o evento durou 20 horas. No dia de sua realização, a TV Globo deu um “flash”e alguns jornais mandaram repórteres, entre os quais Carlos Jurandir Monteiro Lopes (O Globo), já falecido, e José Casado (O Fluminense), hoje colunista da Veja, que se tornariam meus grandes amigos.
“O Grupo de Trabalhos Avulsos pretende que o Dia da Criação seja uma festa livre onde todas as pessoas possam participar com sua música, sua arte e as boas vibrações. Um concerto pop em que se mistura, pela primeira vez, educação e rock.”, assinalava o texto que divulgava o evento. Os ingressos também foram vendidos antecipadamente nas salas de aula dos colégios da cidade e em dois postos fixos: um no Edifício Profissional, no bairro 25 de Agosto, e outro em Ipanema, zona sul do Rio.
Militância comunista
Ipanema? Sim, os ingressos foram vendidos no famoso bairro de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Havia um protagonista clandestino em tudo aquilo, José Montenegro de Lima, o “Magrão”, um dos dirigentes do PCB sequestrados pelos órgãos de segurança do regime e desaparecido, em 1975. Idivarci era militante do PCB e estava ligado ao “Magrão”, encarregado do trabalho juvenil do Partidão.
Havia uma parceria com o famoso “setor cultural” do PCB para que a juventude fosse mobilizada contra o regime, por meio do movimento cultural, que começava a se reestruturar por meio do chamado “circuito universitário” e do movimento cineclubista. A UNE estava fechada, desde o fracassado congresso de Ibiúna, e a maioria dos diretórios centrais das universidades também. Os shows era um ponto de encontro, um momento de liberdade e uma oportunidade de sonhar.
Sabedor de que era filho de velhos militantes do PCB, o jornalista Raul Azedo Netto e a pintora Aparecida Rodrigues Azedo, Idivarci havia me abordado sem subterfúgios e me chamou para uma reunião da base do PCB no Centro de Caxias, formada entre outros por Jarbas Amorim, líder metalúrgico cassado; o velho Ubiraí Rodrigues, líder ferroviário, que haviam saído da cadeia; Juca Peixeiro, cuja banca ficava sob as escadas da estação da Estrada de Ferro Leopoldina, Guaraci e Dorinha, sua esposa, a ex-mulher e o irmão de Idivarci. Como eu morava no Engenho Novo e a reunião estava marcada para as 7 horas da manhã, em caxias, a solução foi ir ao baile do Fluminensinho, gafieira da Avenida Nilo Peçanha, e amanhecer no äparelho” do partido, a própria casa de Idivarci, onde tomei o café da manhã.
Militar em Duque de Caxias foi uma oportunidade de deixar a área de influência do comitê de jornalista do PCB, ao qual estava afetivamente ligado, por causa das relações familiares, para começar uma militância mais orgânica, digamos, “proletária”, junto àqueles velhos quadros operários. Ali começou uma longa parceria.
Em 1973, fui trabalhar no jornal O Fluminense, onde organizei uma base do partido. No ano seguinte, Idivarci se separou de primeira mulher e se mudou para a antiga capital fluminense, com objetivo também de se tratar de hanseníase, doença vista até hoje com muito preconceito e muito comum nas zonas rurais brasileiras até a década de 1960.
Aprovado no vestibular do curso de Ciências Sociais da UFF, passei a trabalhar e estudar na cidade e precisei sair da casa dos meus pais, no Engenho Novo. Fui morar numa República, na Rua Lopes Trovão, 500, em Icaraí, juntamente com o ex-líder bancário e jornalista Zola Xavier da Silveira, então um jovem operário na construção da Ponte Rio Niterói, e Ana Célia Pessoa da Silva, estudante de Engenharia Química, na Universidade Federal Fluminense, com quem viria a me casar pela primeira vez. Separado, sozinho e em tratamento no Departamento de Doenças Tropicais do Hospital Universitário Antônio Pedro, de Niterói, Idivarci foi acolhido por todos nós.
Mesmo em tratamento, Idivarci era responsável por criar a Juventude do MDB nos municípios do antigo estado do Rio, tarefa que recebeu do partido. Foi um dos organizadores do ato de lançamento da campanha de anticandidato de Ulysses Guimarães, na Assembléia Legislativa do antigo estado do Rio de Janeiro, em setembro de 1973, de onde saiu a passeata registrada na foto. Para fazer oposição ao regime, Ulysses ganhou nas ruas o prestígio popular que falou ao presidente Ernesto geisel, eleito pelo voto indireto, em 174.
Embalados pela Juventude, Ulysses e Amaral percorreram os imponentes pilotis da Avenida Amaral Peixoto, a mais central das cidade, ao lado de Alves de Brito e do então vereador Carlos Coimbra de Melo, ambos dirigentes do PCB, até a estação das barcas, onde houve um comício relâmpago. Fiz a cobertura desse evento histórico, como repórter especial do O Fluminense. Nesse dia, a oposição à ditadura militar voltou às ruas e não mais as deixou.
Nas eleições de 1974, Idivarci coordenou a campanha de Alves de Brito, um ex-caldeireiro de cobre, que viria a ser o segundo deputado estadual mais votado do antigo do Rio. Seu desempenho eleitoral na Baixada foi considerado excelente: graças ao trabalho de Idivarci e seus companheiros da Baixada, recebeu 3.500 votos em Caxias e 1.500 em Nova Iguaçu. Para o PCB elegeu um operário no antigo estado do Rio e a jornalista e líder feminista Heloneyda Stuart, na antiga Guanabara, para a Constituinte da fusão RJ-GB.
Exílio e anistia
Passada a eleição, Idivarci foi enviado para um curso de formação na Escola de Quadros do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), juntamente com Lair Rodrigues, estudante de Química, que fora o motorista da campanha de Alves de Brito e, por isso, conhecera todo o partido no antigo estado do Rio de Janeiro. Hoje, Lair vive em Barcelona, com a mulher e a filha cubanas, mas durante muitos anos, desde o exílio, foi empresário em Cuba, representando a indústria farmacêutica alemã. Eram muito amigos.
Após o curso na escola de quadros, Idivarci não pôde voltar ao país, porque o núcleo dirigente do PCB do antigo estado do Rio de Janeiro havia sido preso. Permaneceu em Moscou. Correria até risco de vida, pois passou a ser o responsável pela Seção Juvenil do Comitê Central, após o substituto de José Montenegro de Lima, Regis Fratte, ser promovido ao secretariado do Comitê Central, sob a liderança de José Salles e Anitta Leocádia. Na Europa, Idivarci foi o responsável pela organização da grande delegação brasileira que participou do Festival Mundial da Juventude de Havana, em 1978. A delegação foi integrada por centenas de jovens e artistas que estavam exilado e viajaram de navio para Cuba.
Após o festival, Idivarci foi encarregado de viajar clandestinamente ao Brasil, para reestruturar a seção juvenil e preparar a volta do Comitê Central do PCB, pois campanha da anistia estava de vento em popa. A maioria do Comitê Central compreendia a mudança em curso, principalmente após as eleições de 1978. Foi quando surgiram as grandes divergências com Prestes, que considerava a anistia uma nova “Macedada”, a anistia de 1937, que faz parte do plano para implantar o Estado Novo.
No final dos anos 1970, eu era um dos principais lideres estudantis do PCB, integrava a Comissão Pro-Une e atuava intensamente na reorganização do partido. Em 1977, porém, quando participei das grandes manifestações realizadas em maio, na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, denunciei à imprensa que minha casa havia sido invadida pela polícia. A notícia chegou ao conhecimento de Idivarci em Moscou, por um recorte de notícias do Jornal do Brasil.
Ao chegar, por meio de Alves de Brito, Idivarci conseguiu me contatar e me informar sobre sua tarefa: reorganizar a seção juvenil e ajudar a preparar a volta do Comiê Central. Também contactou o falecido dirigente comunista Antônio Ribeiro Granja, o “Roberto”ou “Ferreira”, que estava ainda na mais rigorosa clandestinamente. Na ocasião, relatou sua tarefa e pediu ajuda ao Granja, que me indicou para fazer parte de seção juvenil do Comitê Central.
Após a anistia, Idivarci voltou legalmente ao país. Por decisão da nova Executiva do Comitê central, eleita em Paris, a Seção Juvenil foi reorganizada, com Takao Amano, que voltara do exílio, Volmares Bastos, um velho quadro remanescente da seção de finanças do Comitê Central, e Cézar Rogélio Vasquez, estudante de Engenharia da UDRJ, que viria a substituir Takao na Federação Mundial da Juventude Democrática (FMJD), em Budapeste, Hungria.
Logo depois, o ex-líder sindical e dirigente do Comitê Central Hércules Corrêa, responsável pela reorganização da Seção Juvenil, assumiu a direção do trabalho sindical e foi substituído por Givaldo Siqueira, o novo assistente da seção Juvenil. Nessa época, Prestes já estava em confronto com o Comitê Central, com quem se recusava a reunir. Havia estado com ele por duas vezes, junto com Idivarci, mas decidirmos apoiar o Comitê Central, porque achávamos a linha do VI Congresso do PCB, centrada na construção de uma frente democrática e na transição pacífica à democracia, como mais correta. Foi duro para Idivarci, que havia sido secretário de Prestes em Moscou, e era amigo de seus filhos.
Na Seção Juvenil do Comitê Central, fizemos um bom trabalho, que garantiu o apoio da grande maioria dos comitês universitários e secundaristas ao Comitê Central e volta a do PCB à diretoria da ONU, com grande participação, a ponto de termos formado maioria ao atrair para a legenda quadros de outras organizações, entre os quais Alon Feurweker e Pablo Mignoni. Nós havíamos sido alijados da direção da UNE após o Congresso de Salvador, juntamente com o MR-8, pelas demais organizações de esquerda, lideradas pelo PCdoB.
Ao deixar a Seção Juvenil, por causa da idade, Idivarci atuou bastante no Sindicato dos Artistas do Rio de janeiro, do qual foi secretário-executivo. Depois, voltou para o Espírito Santo, onde foi secretario de Cultura da Prefeitura de Vitória e assessor dos governadores Albuíno Azeredo (PDT) e José Inácio Ferreira (PSDB). Construir uma sólida parceria política e de amizade com o ex-prefeito Luiz Paulo Veloso Lucas, um amigo comum, com quem trabalhou até recentemente, até adoecer. Geanne, sua esposa, mãe de seus filhos, professora da rede pública de Vitoria, foi sua companheira por toda a vida, desde quando se conheceram em Duque de Caxias, onde ela era uma jovem militante da Juventude Comunista.
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