*José Caldas da Costa
Figura fácil em todas as discussões sobre questão de violência na mídia capixaba quando estava na ativa como professor da Universidade Federal do Espírito Santo, o sociólogo Erly dos Anjos, 77 anos, quebrou o silêncio e abriu sua casa para receber o jornalista José Caldas da Costa para a primeira entrevista que concedeu depois de praticamente uma década em regime de autorreclusão, desde que se aposentou da sala de aula.
Erly possui bacharelado e Mestrado em Sociologia e Doutorado em Sociologia Rural, com formação em universidades norte-americanas durante dois períodos que morou nos Estados Unidos. No primeiro, graduou-se e fez o Mestrado. No segundo, concluiu o Doutorado. Nascido em Barra de São Francisco, na família de dez filhos de dona Samina e Astrogildo Romão dos Anjos, o então jovem Erly deixou a cidade no início dos anos 60 para estudar. Sonhava ser médico e estava se preparando em Vitória quando estourou o golpe de 1964.
Na véspera do Natal de 1965, com a ajuda do irmão Edgard, deixou o País a bordo de um navio cargueiro alemão rumo aos Estados Unidos. “Tive medo da ditadura”, confessa Erly. Chegou 15 dias depois como estudante. Acabou em Ohio, “o Piauí dos Estados Unidos”, brinca Tinoco dos Anjos, um dos irmãos mais novos, que intermediou o contato do jornalista. Sem ter como pagar pelo caro curso de Medicina, foi para as Ciências Sociais e pôde estudar o fenômeno muito presente no seu próprio ambiente infantil no Noroeste capixaba, focando na questão social por demanda da imprensa no momento do aumento da violência no Estado.
O mote que abriu a porta e fez a fera voltar a mostrar suas garras foi a reportagem demonstrando o crescimento acentuado dos casos de homicídios, especialmente, na região Norte do Estado, no eixo São Domingos do Norte, São Gabriel da Palha, Vila Valério, Nova Venécia, Boa Esperança e Pinheiros. Os números levaram o coronel da reserva Júlio Cezar Costa a dizer que o ambiente na região “é de guerra civil”. Saiba mais abaixo:
Guerra civil: cidades do Norte do Estado têm taxas de homicídios acima de 50 por 100 mil
Para analisar esse quadro, bem como o contraste com uma grande cidade da região, Colatina, que é uma ilha de paz quando se consideram os homicídios por grupos de 100 mil pessoas, foi que Erly falou com a reportagem. E demonstrou que, embora escondidas, suas garras estão bem afiadas. E foi enfático em dizer que o poder público precisa ser o articulador de medidas preventivas, do contrário não precisa esperar crescimento econômico.
JC – O coronel Júlio Cezar falou em guerra civil, quando anunciou os números da região Norte, com vários municípios acima de 50 homicídios por grupo de 100 mil habitantes por ano. O que o sr. acha dessa afirmação?
ERLY DOS ANJOS – O coronel Júlio César foi meu aluno nos cursos de formação da Polícia Militar na Ufes. A perpectiva com que ele aborda essa questão da violência na região é boa, só discordo do conceito de guerra civil, que é sensacionalista. A guerra civil tem um inimigo conhecido, uma confrontação declarada de nós contra eles. A violência é muito mais complexa, é abstrata e concreta. Vem tanto do macrossocial, das desigualdades, das relações conflituosas pela posse da terra, quanto das microrrelações. Essa violência não é confrontação de inimigo comum, não há um nós contra eles, porque nós estamos dentro deles, e eles dentro de nós. É um jogo de opressão x oprimido.
– São Gabriel da Palha é um dos casos mais emblemáticos, mais que dobrando o número de homicídios em relação ao mesmo período janeiro-novembro de 2020…
– Havia uma suposta paz no interior, mas temos um fator importante da migração do crime na medida em que aumenta a repressão nos grandes centros. Por exemplo, a violência cresceu 40% no Amazonas por causa da migração do Acre e Rondônia. Esses casos do interior, o coronel Júlio colocou bem, tem a ver com a questão das drogas, não é uma violência característica dos conflitos locais. Os conflitos locais têm a ver com a construção da sociedade. E onde eu refuto a ideia da guerra civil é que a violência diminui quando chega a repressão, a intervenção do Estado. Agora, não se pode considerar normal essa violência contra a vida em cidades pequenas e é preciso haver um trabalho integrado entre os governos, desde o municipal, o estadual e o federal. Não só do ponto de vista da repressão, mas também com intervenções sociais, econômicas, culturais, políticas, porque se inter-relacionam.
– No caso, ainda, de São Gabriel há um paradigma posto: o de que onde há emprego cai a violência. Ouvi de um ex-prefeito que o crescimento da cidade (50% de aumento populacional em menos de 20 anos) deve-se ao grande número de empregos gerados por indústrias de confecções, quanto para mão de obra masculina quanto feminina…
– Há um desarranjo familiar. Ao mesmo tempo em que há emprego, faltam serviços de apoio como creches e escolas para os filhos, que ficam soltos, ao alcance do recrutamento pela criminalidade. É preciso diagnosticar os fatores e entrar com um plano de intervenção. É preciso haver uma articulação do crescimento econômico com os serviços sociais da Prefeitura. A violência é fruto do desarranjo da sociedade, que não suporta o desequilíbrio. A violência é a desconstrução da condicionante do bem-estar social.
– O modelo de escola em tempo integral é uma forma de intervenção?
– O social tem que acompanhar o econômico e o modelo de escola integral é um dos caminhos mais sustentáveis de manter a família integrada ao trabalho, dentro da conceituação do antropólogo Darcy Ribeiro, implementada há 40 anos a partir do Rio de Janeiro.
– Erly, o Brasil não planta um pé de coca, mas temos uma verdadeira epidemia do uso dessa substância pelas classes média e alta e de seu subproduto, o crack, que vem devastando principalmente os mais pobres…
– O problema das drogas envolve grandes empresários, grandes corporações e a política. A periferia é uma ordem formada na desordem social. Há um livro muito bom para mostrar isso e lançado recentemente, que é “República das Milícias: Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro (de Bruno Paes Manso, Prêmio Jabuti). Ele mostra como essas facções fascitas se organizam no meio da desordem social. São facções que atuam com segurança seletiva, sem respeito aos direitos humanos e individuais, e que controlam tudo, desde o econômico até mesmo o resultado de eleições. Estão bem articuladas com o poder político.
– Qual a solução?
– Não adianta dourar a pílula achando que vai se acabar com a violência com um plano de ação que não tenha a participação de todos. A pergunta é sempre quais as perspectivas? Submeter ou lutar? Nossa violência social foi transplantada do sertão para as cidades, dos jagunços e das pistolagens para os crimes de mando urbanos (o tema é abordado pelo sociólogo em artigo científico de 2008, na Ufes, com o título “A pistolagem entre nós: crimes de mando e violência no Espírito Santo”).
Medellin, na Colômbia, é o exemplo mais bem-acabado de como se controla essa violência. Eles resolveram de dentro para fora, do microuniverso, para o médio e o macro. Fizeram pequenas ações de regeneração de áreas degradadas socialmente e criaram uma rede de comunicação e produção entre essas áreas que foram sendo recuperadas, por meio do urbanismo social. Houve uma articulação, uma reconexão dentro da sociedade. Foi um trabalho com ações comunitárias linkado com o trabalho de ONGs, em parceria com as prefeituras. O ciclo vicioso se transforma em ciclo virtuoso, onde os fins são os meios.
– Mas como esse exemplo de Medellin pode ser aplicado entre nós?
– Temos que reconstruir o pacto social. Medellin pegou uma situação dilacerada e criou um Pacto de Paz, por isso o exemplo mais bem-acabado de um projeto que deu certo. Agora, estão passando por um processo de destruição do pacto e o cartel está renascendo. É preciso manter um estado de constante vigilância nesse Pacto de Paz.
A periferia é fruto da desorganização e existem ações positivas sendo feitas de maneira isolada pela sociedade dentro dessa desorganização. Um Pacto de Paz vai reconectar as ações positivas da sociedade. As pequenas igrejas na periferia são exemplos de ações positivas, porque reconstroem o humano e o social. Tenho exemplos disso muito perto de mim. A religião tem papel na criação do ciclo virtuoso na periferia quando articula socialmente.
– Há, no caso específico do Noroeste do Estado, uma expectativa grande de uma nova era econômica, com a chegada de ferrovias e, com elas, novos empreendimentos econômicos. Como os gestores públicos podem se antecipar e evitar que essa expansão traga junto problemas de violência?
– Nada deve ser feito individualmente. É preciso um esforço de coordenação entre os municípios, das regiões com o Estado e com a União. Reuniões dos atores locais e destes com as instituições do Estado, a Secretaria de Defesa Social, Ministério Público, todos devem estar envolvidos. Sem isso, sem uma conexão de municípios, Estado e União, a capacidade de previsão é impossível.
Nada é produzido localmente. A violência é externa e vai ocupando os espaços que estão abertos. O coronel Júlio tem razão quando fala que a violência vai fazendo o seu rearranjo, e isso vai acontecer, principalmente, se a população não se articular com o poder público, com apoio logístico de fundos federais voltados para isso. Vamos ocupar as avenidas, as praças, os espaços públicos.
O problema é que não há uma mobilização pública do Governo Federal para nada, nem para a Segurança, nem para a Saúde e nem para a Educação. Estão destruindo o que havia, é só olhar o que fizeram com a saúde em meio à pandemia. Não estão alocando dinheiro para vacina em 2022. O enfrentamento da violência tem que se tornar uma questão pública com prioridade porque afeta o bem-estar da sociedade. É contraproducente para o desenvolvimento econômico.
– É possível driblar essa inação federal e fazer um movimento de baixo para cima, a partir dos municípios?
– Sim, é como a pressão das ruas. Quando as ruas gritam os governos tremem. É preciso atiçar esse fogo inicial, essa articulação dos municípios. A violência é complexa é não dá para lidar com ela de forma repressiva e pontual, como se faz. É preciso planejamento de ações de curto, médio e longo prazo, de forma integrada. Se a população ocupa os espaços as organizações criminosas não vão ocupar.
– Gostaria que o sr. analisasse o caso de Colatina nesse contexto que foi colocado, tomando-se por base o painel de homicídios produzido pela Secretaria de Segurança: é uma ilha de paz, uma cidade grande na região com sete homicídios por grupos de 100 mil…
– É o exemplo clássico de uma cidade com uma coesão muito forte. São famílias tradicionais, inter-relacionamentos. Isso é mantido pelas tradições locais, as festas das comunidades, o convívio, sem grande volatilidade na população. Emile Durkheim (David Émile Durkheim foi um sociólogo, antropólogo, cientista político, psicólogo social e filósofo francês), que muita gente via como reacionário e de forma negativa nos anos 60/70, por causa de sua visão positivista e é visto como funcionalista ou organicista, que defende a importância das instituições sociais: família, igreja e escola. Ele falou da solidariedade e dos riscos do enfraquecimento do tecido social. Ele está mais atual do que nunca, mas seu conservadorismo é questionado e usado erroneamente pela direita reacionária com o bolsonarismo.
A sociedade moderna fracassou com o individualismo exacerbado, com essa busca da liberdade individual sem considerar o outro, como fruto de um capitalismo selvagem. A sociedade moderna falha nas suas respostas quanto à coletividade. Olha o caso das vacinas? O sujeito acha que é direito pessoal dele não tomar a vacina, mas esquece do interesse coletivo. Um indivíduo não imunizado submete todo o coletivo ao risco. A modernidade tem que ser trabalhada levando em conta esse processo destrutivo do liberalismo. Temos que fazer outra construção.
Boaventura de Souza Santos, que é um professor renomado da Universidade de Coimbra (Portugal), fala da necessidade de uma revolução paradigmática, retrabalha a importância das instituições e da solidariedade, num plano de um paradigma emergente que condiz mais com a violência na contemporaneidade. O novo paradigma engloba o social, o ambiental, a sustentabilidade, porque o paradigma científico não deu conta de atender às necessidades humanas. (José Caldas da Costa é jornalista há mais de 40 anos e escreve como colaborador do Tribuna Norte Leste)
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