*José Caldas da Costa
O drama da semana – o assassinato de Iris Rocha de Souza, 30 anos, com sua bebê de oito meses no ventre – traz em seu enredo dramas humanos e de dever do Estado.
Primeiro, o enredo com as idiossincrasias humanas. De um lado, algo muito positivo. A história de uma mulher que caminha os novos tempos adquirindo competências profissionais que dão a ela seu lugar na sociedade. Uma mulher que nunca iria depender de homem algum para viver.
De outro lado, a insegurança masculina provocada pela figura forte de uma mulher. Insegurança que é manifestada pelo uso do argumento da força. Alguém que mente sobre si mesmo e desaba junto com seu castelo de areia.
Antigamente se dizia “mente sã, em corpos sãos”; hoje parece cada vez mais verdadeira a tese “músculos hipertrofiados comandados por cérebros atrofiados”.
O escritor Daniel Golleman discorre sobre quatro tipos de inteligências: cognitiva, física, social/emocional e espiritual. Destas, a única que não pode ser desenvolvida – embora possa ser “emburrecida” pelas más escolhas – é a física. Já nascemos com ela.
Outro psicólogo, Howard Gardner, difundiu a ideia das inteligências múltiplas para contrapor o conceito de que a inteligência pode ser medida por um teste, o Teste de QI, e busca um diálogo entre a modernidade e o conceito grego do equilíbrio. Ou, de uma forma mais sofisticada, o conceito da “paidéia”, que em síntese pode ser entendida como “o estado de um espírito plenamente desenvolvido, tendo desabrochado todas as suas virtualidades, o do homem tornado verdadeiramente homem”.
O ambiente familiar é fundamental para se alcançar essa ‘paidéia”. Ambientes onde haja respeito entre os pais, e dos pais para com os filhos, tenderá a provocar uma resposta em forma de respeito dos filhos com os pais e dos irmãos entre si.
Na fase adulta, meninos seguros, que projetarão na sociedade seus valores familiares, e meninas que não aceitarão de seus parceiros nada menos do que o que viram e receberam em casa – se não também o amor, no mínimo o respeito. E nenhum deles, nem os meninos e nem as meninas, se sujeitará a relacionamentos abusivos – de nenhuma das partes, independente de gênero, haja vista que o humano é formado da mesma raiz.
Feita essa reflexão, vejamos o papel do Estado quando a regra é quebrada. E a esse ente regulador de interesses de todos está reservada uma função extremamente importante. Então, senta que lá vem história.
No drama de Iris, o Estado falhou feio e precisa, além de fazer as devidas correções, fazer mea culpa e usar a experiência para melhorar seus serviços.
Aqui mesmo neste jornal antecipamos que, no dia 5 de outubro de 2023, a jovem enfermeira registrou um boletim junto à Delegacia Especializada da Mulher da Região Metropolitana e pediu medida protetiva contra o seu então namorado, agora identificado como Cleilton Santana dos Santos, 27 anos. Isso foi feito às 19h31, portanto, no plantão, o que demonstra que o caso requeria urgência.
Vou reproduzir, tal qual consta no boletim, todos os termos do que Iris contou na Delegacia. Leiam com atenção.
“A vítima veio relatar que namora com o autor a (sic) cinco meses; que o autor vai na casa da vítima, e ela vai na casa dele; que o autor reside com a família; que, segundo a vítima, ela está grávida aproximadamente a (sic) quinze semanas; que, segundo a vítima, o autor não é usuário de drogas ilícitas, nem envolvido como tráfico de drogas; que o autor é servidor público, policial militar-ES (aqui cabe uma ressalva nossa: não é e nunca foi, ou seja, ele mentia para ela); que, segundo a vítima, ela nunca fora agredida física e verbalmente pelo autor; que, segundo a vítima, o autor nunca foi agressivo com a vítima; que, segundo a vítima, a agressão sofrida por ela nessa data foi uma surpresa para ela, devido ao fato de que ela e o autor estavam conversando normalmente; que a vítima, pelo fato dela ter omitido uma informação relacionada ao trabalho, fez com que o autor a agredisse com um “golpe de nome mata leão”, em cima da cama; que, segundo a vítima, após o golpe, ela desmaiou, perdendo os sentidos; que ao voltar a si, estava sentada no chão com o nariz sangrando e tossindo; que o autor estava próximo à vítima, ajudando a levantá-la, levou (ao) banheiro e deu banho na vítima e o autor pediu perdão; foram para a casa da família dele; que a vítima foi trabalhar durante a tarde, relatou para a coordenadora de pesquisas, que a incentivou a procurar essa unidade, para que pudesse fazer o registro do fato; que, segundo a vítima, o autor já usou a arma de fogo da corporação para intimidá-la; que, segundo a vítima, no momento de raiva; que deseja acompanhamento psicológico, que deseja visita tranquilizadora; que não deseja Casa Abrigo; que deseja representar criminalmente em desfavor do autor e deseja medida protetiva; que a descrição foi lida e assinada pela vítima”.
Nos dados complementares, o atendente registra no boletim unificado que a vítima “possui lesão no pescoço”.
O que os senhores acham que aconteceu nos 97 dias que separam o registro da ocorrência e o advento de seu corpo encontrado à beira de uma estrada sem pavimentação no interior de Alfredo Chaves?
NADA, por parte do Estado. Assim mesmo, com todas as letras em maiúsculas. Isso numa unidade federativa que já foi campeã brasileira de feminicídios, onde impera uma cultura machista, de domínio masculino como fruto de nosso próprio caldeirão étnico colonizador, onde até bem pouco tempo (e quiçá isso ainda não aconteça) filhos adolescentes eram trazidos do interior pelos próprios pais (a parte masculina do casal) em excursões para “casas de massagem” da Região Metropolitana para “aprenderem a ser homem”.
Em 2023, o Espírito Santo registrou 35 casos de feminicídios, sendo 11 na região metropolitana, nove na Noroeste, sete no Norte, cinco no Sul e dois na região Serrana. O Estado não é mais líder nacional desse tipo de crime, já foi, tendo caído para o 10º lugar no Brasil, graças a uma grande campanha que envolveu todos os poderes e, inclusive, levou à criação das Delegacias Especializadas, em uma das quais a jovem enfermeira foi buscar ajuda e não encontrou.
Na entrevista coletiva das autoridades de segurança, o delegado chefe da Polícia Civil, José Darcy Arruda, depois de assegurar que o ex-namorado teve os passos monitorados e “temos informações científicas de que estava na cena do crime”, falou sobre a queixa feita por Iris em outubro e “justificou”: “Estávamos implementando outro sistema e esse material não foi tramitado”. Ou seja, não foi feito inquérito, investigação e nem dada pela Justiça a medida protetiva que Iris solicitou.
Por muito pouco o competente doutor Arruda não inverteu o ônus da prova: “Do dia da queixa até o dia 11, quando o corpo foi encontrado, infelizmente a vítima não retornou à delegacia para informar se estava ou não acontecendo mais situações neste sentido”.
Ou seja: uma mulher sofre violência doméstica, quase morre, é incentivada por colegas a denunciar, vai no plantão da Delegacia Especializada, presta queixa, pede medida protetiva, apoio psicológico e visita tranquilizadora, passam-se 97 dias e nenhuma medida foi tomada!?
A Delegacia da Mulher não instaurou o devido Inquérito Policial. Se tivesse instaurado, o autor das agressões, ora apontado, identificado e qualificado (embora a própria PC tenha registrado em suas qualificações tratar-se de um policial militar, o que, repita-se, nunca foi), teria sido indiciado pela Polícia Civil, denunciado pelo Ministério Público e poderia até ter virado réu na Justiça.
Bem, complementando a entrevista, o chefe de Polícia acrescenta: “De qualquer maneira, já designei à Corregedoria da Polícia Civil que apure com rigor o fato de não ter sido tramitado naquela ocasião”.
Iris morreu. De acordo com a delegada de Alfredo Chaves, Maria da Glória Pessotti, há imagens de videomonitoramento mostrando que Iris Rocha entrou no carro do ex-namorado por volta do meio dia de quarta-feira (10), próximo ao seu local de trabalho. Depois disso, não foi mais vista. Mas, segundo a delegada, o carro foi visto passando por Domingos Martins, acesso pelas montanhas ao local onde o corpo foi achado.
E por que ela teria entrado no carro do pai da criança que gestava, se havia pedido medida protetiva? Justamente porque tinha na barriga uma filha que era dele também. Uma informação relevante está na entrevista que a mãe de Iris, jornalista aposentada Márcia Rocha, concedeu ao portal A Gazeta nesta sexta-feira (19): a filha estaria procurando o pai da bebê para pedir pensão para Rebeca.
“Pelo que levantei, ela voltou a se relacionar com ele. Provavelmente por causa do bebê que ela estava esperando. A mãe dela me falou que ela havia dito que iria voltar a conversar com ele, mesmo com a medida protetiva que solicitou. Tudo indica que isso aconteceu. Tanto que ela entra no carro dele na quarta-feira (dia 10). Tem imagens de videomonitoramento mostrando isso. Por volta do meio dia. Do lado de fora da Ufes. Eu acho que eles faziam tudo para esconder que o relacionamento estava ruim. A família diz que ela não estava mais se relacionando com ele, mas pelo levantamento que fiz, por testemunhas, pelo menos por conta da criança, ela continuava a ter contato”, disse a delegada.
Só para completar, durante a coletiva as autoridades policiais, especialmente a delegada Maria da Glória, reafirmam o caráter extremamente abusivo do relacionamento do vigilante de supermercado e motorista de aplicativo Cleilton Santana dos Santos (a informação sobre a ocupação foi dada pelo próprio advogado dele para o portal A Gazeta) com a enfermeira Iris Rocha de Souza.
“Ele passava 24 horas por dia monitorando a vítima. Era um relacionamento muito abusivo. Controlava toda a vida dela. Ficava do lado de fora do trabalho dela na Ufes (Centro de Ciências Biomédicas, em Maruípe) vigiando. O telefone dela ficava com ele e ele que respondia as mensagens dela. Ela vinha sofrendo agressões. Segundo levantamento que fiz, ela só andava com roupa de manga comprida, é possível que para não mostrar lesões. As vezes aparecia com rosto lesionado. Ouvi informalmente várias pessoas e todos confirmaram as ameaças e o controle dele sobre ela”, disse Maria da Glória.
A pergunta final: a Polícia Civil poderia ter evitado a morte da enfermeira Iris Rocha e de sua bebê prevista para nascer por volta de 20 de fevereiro?
Que a sociedade não fique sem essa resposta.
Não é demais afirmar que a omissão e o descaso da Polícia mataram a moça.
* O autor é jornalista há cinco décadas e diretor da TNL
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