*João Gualberto Vasconcellos
O pensador alemão Max Weber afirmou em seus escritos que “A história é o lugar do milagre”. De fato, muito do que ocorre na vida das sociedades só se explica mesmo por algo milagroso. É a surpresa, o inesperado que muitas vezes nos atropela. Essa frase me veio à mente quando comecei a estudar a vida de um dos mais notáveis – e desconhecidos – políticos capixabas.
A pesquisa começou quando a professora e historiadora Adriana Campos me pediu para estudar os coronéis que foram deputados em nossa assembleia legislativa na Primeira República, entre 1889 e 1930. É um trabalho que estamos fazendo junto a uma equipe que tem outros nomes, no contexto da comemoração dos 190 anos da Assembleia Legislativa do Espírito Santo.
Adriana Campos é a organizadora de um livro que trata do evento comemorativo, e por sua solicitação comecei a analisar a história política do Dr. José Coelho dos Santos, que foi deputado constituinte em 1892, no início da nossa era republicana.
O Dr. Coelho dos Santos foi um típico político dos novos tempos que a república trouxe: positivista, maçom, abolicionista, republicano. Na lógica dos grupos políticos locais, foi membro da corrente ligada à liderança de Muniz Freire, presidente do Espírito Santo de 1892 a 1896 e, depois, de 1900 a 1904.
Os munizistas foram responsáveis por uma nova pauta no desenvolvimento regional. Eram muito ligados à ideia do progresso, do avanço da ciência e dos processos de instalação de uma sociedade voltada para o que significava o sucesso material, a educação, o urbanismo, a saúde pública, ideias para o Brasil que estava saindo do sistema escravocrata.
O mais admirável, o que o faz um milagre em nossa história política é um outro elemento da sua história: Dr. José Coelho dos Santos era preto. Médico formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1887, em pleno período do escravagismo, portanto. Certamente não era membro de uma família pobre.
Nascido em 1862 em São Pedro de Itabapoana (distrito de Mimoso do Sul), no Sul do Espírito Santo, era filho de um casal de negros. O pai – artesão, pedreiro e carpinteiro – conseguiu, pela força do seu esforço, comprar uma propriedade e educar o filho em boas instituições da região, inclusive em Campos.
Por sua sólida formação educacional, foi aceito em uma faculdade na Corte e lá concluiu a sua graduação, com uma tese de doutoramento sobre Paralisias Periféricas. Sim, doutoramento. Naquela época os médicos eram chamados de doutores porque precisavam apresentar e defender teses de doutorado. A do Dr. Coelho dos Santos tem 123 páginas e contém o que havia de mais moderno em seu campo de estudos no fim do século XIX. Ele foi, de fato, um homem da ciência.
Apesar de não estar situado nos setores sociais menos favorecidos, tinha contra si toda uma construção racista que perseguia os de sua origem. Não é difícil imaginar os preconceitos que teve que superar em sua trajetória estudantil e profissional para se tornar médico e exercer sua profissão em um mundo onde os de sua origem andavam descalços, exerciam em sua maior parte atividades simples e manuais, sendo a maioria analfabetos.
Aos escravizados não havia o direito à educação, às consultas médicas, não estavam incluídos em nenhuma política pública. Os bem-nascidos os viam com maus olhos.
Ainda assim, o Dr. Coelho dos Santos concluiu o seu curso superior e voltou para clinicar na sua vila de origem, onde fez carreira como médico e cirurgião. Além disso, por sua formação, exerceu os cargos que correspondem hoje ao de vereador e de prefeito municipal por várias legislaturas.
Foi eleito deputado constituinte em 1892 e por mais duas vezes deputado estadual. Foi ainda juiz de direito, delegado local da Saúde Pública, articulista e dono de jornal, além de major cirurgião da Guarda Nacional.
Por fim, terminou sua carreira política como vice-presidente do estado no mandato de Jerônimo Monteiro, eleito em 1908. Uma trajetória de muito sucesso para qualquer cidadão de seu tempo, e ainda mais para um ser humano que certamente não havia nascido predestinado a ter essa trajetória. Seguramente foi um ser humano excepcional.
A partir de 1910 mudou-se para Campos, onde passou a exercer a medicina. Lá também fez carreira de sucesso e prestígio, tendo sido venerável da maior loja maçônica daquela região em seu tempo.
Para terminar, volto ao início: a história é o lugar do milagre, mas só para os fortes, só para os que acreditam em si e na força do destino. Homens como esse certamente merecem ser mais conhecidos e admirados.
*João Gualberto Vasconcellos é cientista político, professor emérito da Ufes
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