* José Caldas da Costa (editor de conteúdo interino)
O Espírito Santo caminha para estabelecer um recorde altamente positivo. Depois de comemorar o fechamento de 2023 com redução de -3% no número de homicídios, o Estado está fechando o primeiro trimestre com perspectivas muito melhores para 2024: o número de homicídios caiu -19,4% nesses três meses em relação ao mesmo período do ano passado.
Se mantiver essa tendência, o Espírito Santo vai poder comemorar o mais baixo número de homicídios da série histórica, iniciada em 1996, quando esses índices passaram a ser monitorados. Enquanto em 2023 foram 976 crimes contra a vida, a projeção para 2024 fica em torno de 100 homicídios a menos. A queda foi em todas as regiões, mesmo no Norte, onde os números vinham em alta nos dois primeiros meses.
As estatísticas estão disponíveis no painel do Observatório da Segurança Pública, uma ferramenta da Secretaria de Estado da Segurança Pública que monitora os indicadores prioritários. Os números são até este sábado (30), último dia em que os dados foram inseridos no sistema. Veja a queda percentual por região: Noroeste (-40,8%), Metropolitana (-15,5%), Serrana (-14,3%), Norte (-14%) e Sul (-13,8%).
Nesse momento, o Espírito Santo registra a menor taxa de homicídios por 100 mil habitantes da série histórica iniciada em 1996: 22,5 homicídios por grupos de 100 mil. A maior foi em 2008 com 58,3 e, a partir daí, iniciou o período de queda, com uma quebra de normalidde em 2017, quando houve a greve da Polícia Militar e, devido aos mais de 200 homicídios de fevereiro daquele ano, o índice anual subiu para 35,1 mas voltou a cair nos anos seguintes.
Estaria indo tudo muito bem, não fosse por um detalhe que salta aos olhos de quem acompanha os dados da segurança pública no Estado e tem escapado aos mais desatentos: o aumento anormal da letalidade nas abordagens policiais, principalmente em regiões confragradas pelo tráfico.
MORTES EM CONFRONTO
Na média estadual, as mortes em confrontos com a polícia aumentaram em 92,3% (estava em 100% quando esta reportagem começou a ser escrita, com números até o dia 27, mas houve alteração com a inclusão de mais uma morte, ocorrida no dia 30, em Linhares, mas a média caiu porque o número de dias considerados aumentou) neste primeiro trimestre em relação ao mesmo período de 2023 (sempre tomando como referências os números disponibilizados até o dia 30 no Observatório da Segurança Pública). Saltaram de 13 em 2023 para 25 em 2024.
O caso mais recente, ocorrido em Linhares, envolveu quatro homens que assaltaram uma casa de ferramentas em Guarapari e fugiram pela BR 101 em direção ao Norte do Estado. Romperam uma barreira no posto da Polícia Rodoviária Federal, em Linhares, e a perseguição continuou, com troca de tiros.
No bairro Três Barras, bateram em muro. Um dos homens apontou uma arma para os policiais e foi alvejado. Socorrido, morreu após dar entrada no hospital.
Para quem acha pouco, então confere essa: somente em Vitória, o número de mortes em confronto nesse período aumentou 1.400%. Em números absolutos, significa que, enquanto em 2023 houve apenas uma morte em confronto na capital, esse número saltou para 15 em 2024.
Esse índice da capital equivale a 60% do total de todo o Espírito Santo numa cidade cuja população (322 mil habitantes) corresponde a aproximadamente 8% do total de cerca de 4 milhões de moradores do Estado. E isso numa área de apenas 2,1% dos 46.074 quilômetros do território capixaba.
Todas as mortes em confronto em Vitória em 2024 são de pessoas pretas, fatos ocorridos em bairros conflagrados: quatro em Tabuazeiro, no Morro do Macaco; duas no Bomfim e duas no Morro da Engenharia; e uma em Bairro da Penha, Estrelinha, Itararé, Piedade, Romão, Santos Dumont e Comdusa.
A justificativa em todas elas é padrão: os policiais estavam em patrulhamento, foram recebidos a bala e reagiram à “injusta agressão”. Na ocorrência mais recente, na madrugada da última quarta-feira (27), policiais do Batalhão de Missões Especiais (BME), do Batalhão de Ações com Cães e da Força Tática relataram que foram recebidos a tiros até de fuzil pelo bando que domina o tráfico na região. A polícia reagiu. Três suspeitos morreram. Depois de feridos, foram socorridos para um hospital público, onde não resistiram.
Nesses confrontos, em geral, ocorre algo em comum: quem morre são elementos de baixa idade e com armamento de menor poder de fogo. Como numa guerra, onde os soldados vão para a frente da batalha, enquanto os oficiais do exército ficam na retaguarda, nessa guerra entre as forças de segurança e o “exército do tráfico” parece haver a mesma lógica: do lado oposto, os chefes fogem para a área de mata e deixam os mais novos como bucha. Dois dos mortos nessa operação mais recente no Morro do Macaco eram menores de idade, um com 17 anos, segundo a polícia, “gerente do Terceiro Comando Puro no tráfico da região”, e outro de 16 anos, que, segundo a família, entrou para o crime há cerca de dois meses.
Na região do bairro do Tabuazeiro, na subida para o Morro do Macaco, moradores estão em pânico desde o ano passado com a presença maciça de traficantes. O Estado parece só estar presente quando a polícia chega. Quando ela sai, eles controlam de novo. Por isso, muitos moradores já se mudaram de lá.
Essa mesma região foi palco, em agosto de 2023, de um outro confronto, este à luz do dia, quando cinco elementos ligados ao movimento do tráfico de drogas também foram mortos nas mesmas circunstâncias que os três desta semana. Ou seja, na mesma região, num intervalo de sete meses, oito mortos em confronto.

POSIÇÃO DO ESTADO
A reportagem demandou a Secretaria de Estado de Segurança, que respondeu por uma nota. Antes de falar da nota, entretanto, é preciso fazer um registro. A segurança pública do Espírito Santo foi comandada de abril de 2020 a início de fevereiro de 2024 pelo coronel reformado da Polícia Militar, Alexandre Ramalho, 55 anos. Ele saiu no período eleitoral em 2022 para disputar um mandato de deputado federal. Deixou em seu lugar um coronel de sua confiança, que já era subsecretário, e retornou depois que não conseguiu se eleger.
Em 25 de janeiro deste ano, Ramalho, depois de pelo menos um ano aparecendo à frente de operações “espetaculares”, dando “conselhos” a jovens criminosos presos nesses momentos, tudo devidamente registrado por uma equipe de marketing e divulgado nas redes socias, pediu ao governador Renato Casagrande (PSB) para sair.
Ramalho disse que queria dedicar-se a um projeto político. Pouco mais de um mês depois, anunciou sua opção: o PL, ao qual se filiou pelas mãos do ex-presidente Jair Bolsonaro, derrotado por Lula em 2022 e inelegível até 2030, e sob investigação da Polícia Federal por, supostamente, planejar um golpe contra o resultado das eleições. E vai disputar as eleições para prefeito em Vila Velha, maior colégio eleitoral do Estado.
No dia 5 de fevereiro de 2024, o governador Renato Casagrande anunciou o delegado federal Eugênio Ricas, então superintendente estadual da Polícia Federal, como o novo número 1 da Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social.
Portanto, foi sob a direção do novo secretário (que já carrega no currículo a captura de um dos traficantes mais procurados do Estado, Fernando Moraes, o Marujo, que chefia a organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCV), ligada ao Comando Vermelho, do Rio de Janeiro) que a pasta respondeu aos questionamentos da reportagem sobre o aumento acentuado nos números de mortes em confronto com a Polícia. Vamos à nota:
“A Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social informa que as forças policiais do Espírito Santo vêm trabalhando arduamente no combate à atuação de organizações criminosas que atuam em território capixaba, com foco especial naquelas sediadas na região Metropolitana, principalmente na Capital.
Cabe destacar que o aumento da disponibilidade de armas de fogo e do poder bélico dos integrantes dessas facções tem levado, nos últimos três anos, também a um acréscimo nas ocorrências de confronto armado com agentes do Estado, que estão sendo atacados durante patrulhamento para tentar impedir a atuação dessas organizações nas comunidades.
Durante a resposta a este ato criminoso, infelizmente o resultado morte do infrator tem ocorrido com mais frequência, nas ações de legítima defesa das forças de segurança. Em 2023 foram mais de 4 mil armas de fogo apreendidas no Espírito Santo, sendo 19 fuzis somente ao final do ano, em áreas de atuação dessas facções.
Cabe destacar que a diminuição das mortes nas comunidades é uma premissa do Governo do Estado e do programa Estado Presente e, cabe ao criminoso evitar atentar contra a vida dos agentes da Segurança Pública que trabalham para dar mais segurança e trazer paz às áreas de conflito.
Ainda é válido ressaltar o foco na prisão dos líderes dessas organizações criminosas, incluindo os mais procurados do Espírito Santo, em ações qualificadas e de inteligência. Para isso, o Governo do Estado investiu na aquisição de equipamentos e armamentos mais precisos para a proteção dos policiais que patrulham as área de risco, com tecnologia e aumento da precisão nas incursões”.

‘ESTADO DOMINA VIAS PÚBLICAS”
Das 25 mortes em confronto com a polícia, como já se disse, 15 foram em Vitória, e todas em bairros conflagrados. Depois do episódio mais recente, o comandante-geral da Polícia Militar, coronel Douglas Caus, disse que, no Espírito Santo, quem controla o território é o Estado, ninguém mais. Ou, nas palavras dele próprio, “quem tem domínio das vias públicas é o Estado”.
Assegurou que os seus policiais preparados para o confronto – BME, Batalhão de Cães e Força Tática – continuarão fazendo operações, principalmente, no Morro do Macaco. “Se formos confrontados, vamos revidar, na forma da lei”, assegurou.
A rigor, boa parte da população aprova esse tipo de operação, principalmente aquelas pessoas que estão tendo que deixar suas casas. De acordo com Douglas Caus, organizações criminosas controlam o movimento do tráfico de drogas nessas zonas conflagradas, onde, promete, a polícia vai continuar fazendo incursões “para garantir o direito de ir e vir da população”.
Os focos são o Complexo da Penha (Bairro da Penha, Itararé, Bomfim, Santos Dumont, São Benedito, Jaburu, Horto, Gurigica), conjunto de comunidades elevadas no quadrilátero formado pelas avenidas Marechal Campos, Vitória, Leitão da Silva e Maruípe, controlado pelo Primeiro Comando de Vitória (PCV), ligado ao Comando Vermelho (RJ), e Engenharia, Pracinha de Andorinhas e Morro do Macaco, controlado pelo Terceiro Comando Puro, ligado a organização de mesmo nome também do Rio de Janeiro.
NEM TUDO É O QUE PARECE SER
Mas, se nesses casos de Vitória a polícia busca justificar pelo suposto confronto com organizações criminosas, nem tudo é o que parece ser. Há outros nove casos de mortes em confronto no Estado: dois em Cariacica e dois em Vila Velha, que poderiam se enquadrar em contexto semelhante, e os outros no interior. Um caso em cada um dos municípios de Alfredo Chaves, Colatina, Itapemirim, Sooretama, Linhares e Mantenópolis.
O caso de Sooretama foi de uma dupla vinda da Bahia que estava assaltando em cidades e zona rual da região, foi cercada e, na BR 101, ao ser confrontada, um dos elementos atirou e foi alvejado de volta, morrendo em seguida. Mas vamos analisar um caso ocorrido em Mantenópolis, cidade de 12.770 habitantes, na região Noroeste do Estado, bem próximo à divisa com Minas Gerais. Nos primeiros meses deste ano, a cidade viu acontecerem dois assassinatos à luz do dia, com o mesmo “modus operandi”, como se diz no linguajar policial: o atirador chegou de motocicleta e surpreendeu a vítima.
Mas, no povoado de São José de Mantenópolis, com cerca de mil habitantes, houve uma morte em confronto com flagrante desvantagem entre a vítima e os policiais (veja o vídeo).
De acordo com o BU-53557006, lavrado no dia 25 de janeiro de 2024, uma guarnição da Força Tática do 11º Batalhão da Polícia Militar (sede em Barra de São Francisco), participava da “Operação Sentinela”, sob comando de um capitão, em conjunto com a equipe da Polícia Civil, coordenada pelo delegado chefe da 14ª Delegacia Regional e seu substituto imediato, cumpriam mandados de busca e apreensão domicilar.
Durante as diligências, relata o BU, um das equipes policias encontrava-se no interior de um bar chamado “Bar da Loira”, que era alvo da operação, e outra equipe estava na área exterior, fazendo a contenção e segurança do local para a realização das buscas. Então, surgiu na rua um indivíduo em uma bicicleta, da qual caiu ao passar em um quebra-molas. Pessoas mais próximas visualizaram que ele tinha uma arma de fogo na cintura, e que a arma caiu no chão e o indivíduo colocou a arma de novo na cintura.,
Como as testemunhas correram gritando “está armado”, policiais militares que estavam cumprindo o mandado e próximo do suspeito iniciaram a abordagem oredenando que ele colocasse as mãos na cabeça. De início, o indivíduo obedeceu, mas, quando os policiais se aproximaram, o suspeito teria tirado as mãos da cabeça, sem proferir palavras, “em ato contínuo, levantou a camisa iniciando o movimento de retirar da cintura a arma que portava, ficando evidente a intenção de apontá-la em direção aos policiais”.
Nesse momento, “para cessar iminente ameaça contra a integridade física dos policiais”, foi efetuado, por parte do 2º sargento C., três disparos com a pistola Glock, carga de munição da Polícia Militar. Atingido, o elemento caiu e foi algemado pelo 3º sargento C., que retirou-lhe da cintura a “arma”. Levado para o pronto atendimento de Mantenópolis, onde, durante o atendimento médico, não suportou os ferimentos dos disparos de três tiros feito por um dos policiais da guarnição e morreu. (os nomes completos dos policiais envolvidos estão no Boletim Unificado e resolvemos omiti-los para evitar condenação pública sumária)
O suspeito foi identificado como Lucas Martins Germani Vieira, conhecido como “Luquinha”. Segundo a polícia, com vários registros de ocorrência relacionadas a tráfico de drogas, porte ilegal de arma e ameaça. O incidente foi todo registrado por câmaras de videomonitoramente, mas também por populares.
A arma do policial que efetuou os disparos foi recolhida. Quanto à arma que “Luquinha” portava, verificou-se que, na verdade, era um simulacro, ou seja, não era uma arma de verdade, mas um objeto que, ao ser visualizado, pode ser confundido com uma arma de fogo, sem, no entanto, ter poder para efetuar disparos.

Ex-secretário nacional de Segurança alerta: “Acendeu o sinal amarelo”
Os números Números do painel do Observatório da Segurança Pública, referentes aos últimos oito anos, mostram que, em 2016, o Espírito Santo registrou 34 mortes por confronto com a polícia. Depois, 32 em 2017; 33 em 2018; 32 em 2019; 41 em 2020; 43 em 2021; 57 em 2022; 57 em 2023; e 25 nos três primeiros meses de 2024, até o último dia 30 de março.
A continuar essa mesma letalidade, chegaríamos no final do ano próximos de 100 mortes, que seria praticamente o dobro de 2022 e 2023, que já tiveram um aumento de praticamente 50% sobre 2021.
O coronel reformado da Polícia Militar de São Paulo (1963-93) José Vicente da Silva Filho é uma das maiores autoridades brasileiras em segurança pública. Foi secretário nacional de Segurança Pública e é conselheiro do Instituto Brasileiro de Segurança e Justiça.
Atuando como consultor, ele é chamado para entrevistas sobre o assunto em grandes veículos de imprensa nacionais e internacionais. É figura fácil nos jornais da GloboNews. Além de oficial da reserva, é graduado em Psicologia, com mestrado em psicologia social na Universidade de São Paulo (1984), com distinção. Doutorado em administração pela Universidade de São Paulo (1992).
É professor da Escola Superior de Guerra, campus de Brasília, no curso sobre segurança em grandes eventos, professor de Psicologia Social e de Liderança na Academia da Polícia Militar do estado de São Paulo, de administração e de marketing na Universidade do Vale do Paraíba, São José dos Campos, SP, e de Processo Decisório e Planejamento Estratégico do curso de Doutorado em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública do Centro de Altos Estudos da Polícia Militar do Estado de São Paulo.
Em entrevista exclusiva para a Tribuna Norte-Leste, o coronel José Vicente analisou os números do Observatório da Segurança Pública do Espírito Santo e considerou que a elevação do número de mortos em confronto com a Polícia “acende o sinal amarelo”.
E isso se dá por conta, justamente, de um retrospecto favorável ao Estado, conforme ele analisa: “O Espírito Santo tem se caracterizado por ser um Estado, nos últimos anos, de baixo índice de violência. O percentual de mortes por intervenção policial, em relação ao total de mortes no Estado, é o segundo melhor do País, perdendo apenas para o Distrito Federal. Isso vem acontecendo, sistematicamente, nos últimos anos, mas, pela projeção dos números atuais, podemos chegar perto de 100 em 2024. Isso acende um sinal de alerta”.
Numa análise de possíveis causas, o ex-secretário nacional de Segurança Pública diz: “Isso pode estar vinculado a algumas questões. Pelo lado do crime, a uma possível expansão e ações de grupos criminosos do Rio de Janeiro, já que a proximidade do Estado facilitou num passado não muito distante a expansão e guerra entre dois grupos do jogo do bicho. Isso é conhecido na história da segurança do Estado. O Estado tem um retrospecto muito ruim lá nos anos 90, quando Vitória era uma das cidades mais violentas do País, o que não é o caso agora”.
Por outro lado, como ele enfatiza, descontando esse aspecto da possível expansão, “que a Polícia deve saber como isso está”, é necessário, na opinião do especialista, “que o governo do Estado, que tem um acompanhamento muito próximo do desempenho da Polícia (o governador Casagrande acompanha, sei que ele tem os dados estatísticos na mesa dele, acompanha de perto e não deve estar desatento a essa questão e ela é uma questão muito importante)”, acompanhe com atenção esse aumento da letalidade nas operações policiais.
“O aumento de lentalidade pode estar vinculado a uma penetração do crime organizado, com grupos muito violentos como tem no Rio de Janeiro. Pode-se cogitar um trabalho mais intenso de inteligência vinculado à Polícia Militar, Polícia Civil e a Polícia Federal, para levantar se de fato pode estar havendo uma expansão de território dentro do Espírito Santo”, aconselha.
ESTÍMULO AO CONFRONTO
O coronel José Vicente da Silva indica outra possibilidade: “De qualquer maneira, é importante que a Polícia verifique a possibilidade de estar havendo algum estímulo para o confronto policial, como está acontecendo aqui em São Paulo, infelizmente. Esse estímulo ao confronto acaba levando policiais a uma sede de confrontos. Conheço essa história há mais de 60 anos. E é necessário tomar muito cuidado”.
Os cuidados recomendados pelo coronel paulista começam pelo que foi feito em São Paulo nos cinco anos anteriores ao atual governo: “Primeiro, como foi feito em São Paulo, criar uma comissão de estudos da letalidade nas ações policiais. Como se faz isso? Faz-se uma comissão, normalmente de oficiais, faz um exame técnico de cada caso. Separa, por exemplo, os integrantes da guarnição onde ocorreu a letalidade e é colocada uma projeção do local, com fotografias, mapas e cada integrante, separadamente, vai dizer o que aconteceu. Até para se verificar nada de esclarecimento ou foco de investigação criminal, mas verificar aspectos técnicos e assim checar eventuais falhas de treinamentos e supervisão dos policiais”.
Essa comissão de letalidade, segundo José Vicente, foi muito importante em São Paulo, onde ressalta também outra medida que foi adotada em 2014 de se colocar câmaras no uniforme dos policiais para registrar as operações. O atual governo, de Tarcisio de Freitas, decidiu que não vai manter a política e congelou os investimentos na aquisição de novas câmaras. Ponto que Vicente lamenta.
Do alto de sua experiência, além da comissão para fazer exame técnico dos casos, o coronel José Vicente recomenda se verificar “se essa letalidade aumentou sob o comando de um batalhão, companhia ou algum capitão eventualmente. Verificar se algum, ou determinados policiais, estão com uma quantidade exagerada de letalidades. Qualquer coisa acima de três num período de cinco anos é preocupante. Pode-se pensar, inclusive, em deslocar o policial para área de menos confronto”.
Também da Polícia de São Paulo, anterior à gestão de Tarcísio Freitas, o coronel José Vicente traz a sugestão de “retreinamento” da Polícia. E explica: “Há que se ter muito cuidado, nesse treinamento, na questão das abordagens e o governo tem que sinalizar claramente sua posição. Não adianta o governo sinalizar um achismo de confronto como faz o governador de Goiás e o secretário aqui de São Paulo. É muito importante a posição política do governo”.
José Vicente sabe o que está em jogo: “Embora isso sirva para angariar votos mostrar uma polícia mais para a frente, mais combativa, isso não é bom para o andamento do trabalho policial”.
“A força policial é a força do Estado, a polícia não pertence aos policiais”
O controle da letalidade na abordagem policial comporta outra medida também adotada anteriormente em São Paulo: “Outra medida que é importante é que para cada letalidade policial, independentemente do dia e horário, deve correr para o local o comandante do batalhão, o delegado de serviço, a perícia técnica é prioridade para isso imediatamente, e começar todo o procedimento naquele momento, com o máximo de rigor possível”
“Outro aspecto: viatura de policiamento não transporta ferido. Para isso existe o sistema de Samu, resgate de bombeiro para fazer esse resgate, e é descabido policial atuar nessa parte. E todo batalhão, ou toda unidde regional da Polícia Civil e da Polícia Militar, precisa ter ali uma comissão de mitigação de ações violentas da Polícia”, acentua.
Por fim , o coronel José Vicente enfatiza a necessidade que o Governo do EStado estabeleça prioridade nessa preocupação de controle da letalidade: “O Estado precisa cumprir alguns fundamentos éticos, como a proteção da dignidade humana, mesmo que seja de criminosos, não importa, e a legalidade absoluta. Se o policial não pode ser corrupto, não pode roubar, ele também não pode usar da força fora dos mandamentos legais“.
E volta a salientar: “Acho que acendeu uma luz amarela aí da segurança e é bom verificar realmente o que está acontecendo. A quantidade não é muito grande, então dá para examinar caso a caso nos mínimos detalhes, o que aconteceu, como aconteceu, e porque aconteceu. A letalidade, o controle no uso da força, é um a questão que perpassa por toda a políca. Participei de congressos de chefes de polícia nos EStados Unidos e na Europa e essa é uma preocupação permanente. A força policial é a força do Estado, a polícia não pertence aos policiais, e o comando de toda estrutura de segurança é do governador. Ele estabelece as regras, e as regras começam com valores, e ele não pode abrir mão disso“.

“Quem compra droga, não morre. Quem morre é quem vende”, diz cientista social
João Gualberto Vasconcelos, 74 anos, é professor emérito da Universidade Federal do Espírito Santo, Doutor em Ciências Sociais pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, de Paris, Fraça, e pós-doutor em Gestão e Cultura, pela Universidade Federal da Bahia. Também foi secretário de Cultura do Espírito Santo de 2015 a 2018.
Estudioso da história capixaba, fomos ouvi-lo sobre o tema aqui proposto e ele começou por analisar o problema estrutural da sociedade brasileira, citando o crescimento da periferia nos anos 60, sem política urbana, sem política de transporte, sem educação e sem saúde.
“Ou seja, sem nada. Houve um declínio das atividades agrícolas combinado com a facilidade de locomoção devido ao sistema de comunicação que os governos militares proporcionaram, então, construiu-se a aglomeração nas grandes cidades”, ressalta.
Para ilustrar, Gualberto conta que foi na semana passada ao Rio de Janeiro e estava num bar em companhia de um amigo cearense e o garçom que os atendeu também era cearense. Puxaram conversa e o amigo perguntou a cidade de onde procedia o garçom e se o rapaz não tinha vontade de voltar para lá.
“Ele respondeu: vontade eu tenho, só que lá não tem emprego, eu não tenho o que fazer lá. Então, a gente pode imaginar nesses milhões de cearenses, paraibanos, alagoanos e outros estados, que estão no Rio, São Paulo, Brasilia, essas cidades maiores, por que estão ali? É porque tem oportunidade de trabalho. Agora, se acotovelam em bairros distantes, em condições precárias”, observa.
No caso específico do Espírito Santo, Gualberto salienta que o processo foi dado pela erradicação dos cafezais, que empurrou a população da roça para as cidades regionais e, depois, destas para a metrópole.
“Viemos de cidades do interior e sabemos isso (este jornalista nasceu em Alegre). Meu pai estava em Guaçuí, nos anos 60, depois Colatina, e vamos ver essas cidades encolhendo. Opções vão acabando, menos cinemas, menos palcos, menos livrarias, menos lojas, comércio diminuindo, menos tudo”, comenta o cientista social.
João Gualberto cita outro exemplo de família para ilustrar: “A família de minha mãe tinha uma relojoaria em Castelo, uma loja de esquina, foi diminuindo até virar uma portinha e só ficou aquela portinha aberta até os anos 90 porque minha vó e meu tio ficavam tomando conta, tinham pena de fechar. O dia que minha vó morreu, acabou. Então, na verdade, a construção social das periferias das grandes cidades deu essa acumulação”.
E como entram as drogas nisso? “Num certo momento, a Colômbia começa a fabricar cocaína em grandes quantidades (para atender ao mercado americano e depois o europeu, grifo nosso). Juntou isso com o tráfico de maconha, depois o crack, que é um subproduto da produção industrial da cocaína, e o resultado então temos aí: o comércio de drogas que é hoje um elemento de sustentação das periferias pobres”.
De ponto de vista da sobrevivência das periferias, João Gualberto enfatiza que “a economia das drogas sustenta milhares de famílias, só que ela é ilícita, ilegal, embora o consumo esteja concentrado nas grandes cidades, nos setores sociais que nós pertencemos”.
E denuncia: “Não se morre nos nossos setores sociais, dos que consomem. Quem compra droga não morre, quem morre é quem vende. É um dos sintomas mais graves da desigualdade brasileira. Então temos o resultado, o crescimento enorme do ilícito e uma guerra que se deflagrou nos setores da periferia brasileira, entre quem tem arma legal e quem não deveria ter arma, porque é ilegal”.
E o que aumenta o enfrentamento? Para João Gualberto, “primeiro, a política armamentista do governo Bolsonaro. Aumentou, enormemente, o número de armas. Se pegarmos as estatísticas, e o Programa Estado Presente tem isso, o secretário Álvaro Duboc disse numa palestra que assistimos juntos (promovida por este site em Sooretama logo após o sequestro e morte de três adolescentes por traficantes) que o número de armas quase dobrou em quatro anos e, na verdade, essas armas foram armar o tráfico, a contravenção, foram abastecer de armamentos as disputas nas periferias”.
A combinação entre armas, drogas e pobreza é letal para as periferias, segundo análise de Gualberto: “Estamos vivendo isso. Em alguns lugares onde se concentram os pobres, o tráfico de armas, o tráfico de drogas e a posse de armas instituiu essa violência. No caso de Vitória, está aqui nos morros que tangenciam as regiões onde tem a compra de drogas. Está lá, instituído, e neste momento a sociedade brasileira, em seu conjunto, não tem política de combate à violência”.
Para o cientista, a violência se tornou no problema mais agudo da sociedade brasileira e “não é possível achar que vamos enfrentar isso com os setores aí armados e com a polícia enfrentando nessa guerra permanente. Isso vai destruir a sociedade brasileira”.
Esta reportagem, na avaliação de João Gualberto, toca no problema mais grave da sociedade brasileira hoje, que é a política de segurança inexistente.
“O Bolsonaro não tinha política de segurança e o Lula não tem. O governo do Espírito Santo tem o programa Estado Presente, é um bom programa, que o governador Renato Casagrande começou há mais de dez anos, mudou de novo com o Paulo Hartung para Ocupação Social e agora voltou para o programa Estado Presente. Essa continuidade dá um tratamento a essa questão. Os secretários aqui do Espírito Santo tocam isso muito bem, é louvável, mas isso não impede que se haja uma política de segurança. Precisamos construir, socialmente, uma política de segurança”, finaliza.
NOTA DA REDAÇÃO: Esta reportagem não tem viés ideológico e terá continuidade para fomentar o debate e, quem sabe, mobilizar a sociedade para assumir a responsabilidade pela solução do caos que afeta, principalmente, as populações periféricas.
“No Espírito Santo, o Estado tem o domínio da via pública”, diz comandante da PM
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