Weber Andrade*
“Eu nasci no Brasil, mas minhas ancestrais vieram de longe, muito longe, de África, de Uganda, de Angola, trazidas, talvez, por algum guerreiro ou guerreira escravizado ou por algum amigo do Marquês de Pombal que se achou no direito de escravizar esses guerreiros. Como todas as árvores, fico onde nasço, plantada por mãos humanas ou por meio da semente de minha mãe, defecada por algum pássaro ou ave e só assim crio descendência.
Fui, durante toda a minha longa existência – posso viver mais do que um humano – alegria para os olhos dos humanos adultos e diversão para as crianças, mas, terrivelmente nociva para algumas espécies de insetos, como as abelhas sem ferrão que vivem por aqui. Não tenho culpa, a neurotoxina que produzo é só para garantir minha descendência.”
Esse pode ser o resumo da minha conversa tele(m)pática – perdoem a licença poética – com um exemplar de Espatódea, crescido na margem do rio São Francisco, mesmo atrás do muro do quintal do Sindicato Rural Patronal, na Rua Mineira.
Quando vi a lei municipal sancionada recentemente em Barra de São Francisco, determinando a extinção da espécie, com proibição de produção e venda de mudas e determinação de corte das árvores da Sphatodea campanulata, senti uma saudade da minha terra, uma vontade de voltar a ser criança, de brincar de ‘mijinho’, principalmente com as meninas por quem me apaixonava.
Usava os botões florais de um exemplar da rua onde morava quando criança para aspergir o líquido do seu interior no rosto delas e elas também gostavam da brincadeira e devolviam a gentileza. Nem por isso as Espatódeas – eu não sabia até há pouco tempo o nome da árvore – deixaram de se reproduzir.
Em minha cidade, Mutum, no interior de Minas Gerais, já na divisa com o Espírito Santo, há uma avenida linda, para mim a principal, onde os canteiros centrais foram arborizados com várias árvores da espécie e suas flores eram tão belas e o líquido de seus botões, tão doce, que eu nunca esquecerei delas. Crescemos juntos, eu fui correr mundo, mas elas ficaram por lá e não sei se ainda estão.
No dia em que deparei com a lei que determina o fim delas, fiquei puxando pela memória, tentando lembrar onde as havia. Conheço quase todos os cantos da cidade que adotei como morada e que me adotou como filho, exótico como a Espatódea e, às vezes, com algum veneno verbal para me defender das agressões.
Não conseguia me lembrar de nenhuma até que um dia decidi ir a Mantena, ali em Minas, de ônibus e, quando o coletivo parou em um ponto da antiga rua Rio de Janeiro, em frente a uma floricultura, olhei para o lado e a vi, majestosa, florida. Foi quando me enviou a mensagem de despedida com a qual abri esse texto.
Lembrei então que ela já estava lá, e adulta, quando cheguei a Barra de São Francisco, 50 anos atrás. Bem menor, mas já florindo e oferecendo suas baguinhas para a diversão da molecada.
Creio que ela entende o motivo de nós humanos estarmos determinando, em várias partes do país, sua extinção. Não se queixou porque sabe que viverá em outros países onde não seja nociva a espécies animais.
Mas em meu coração, vai ficar essa tristeza, essa nostalgia, essa saudade precoce de uma árvore que permeou a minha infância e me fez feliz por tantas vezes.
*Weber Andrade é cronista bissexto e colaborador assíduo do site tribunanorteleste.com.br
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