Em mais de 40 anos de profissão, com faro de repórter desde os sete anos de idade quando vi a cena que me levou a escrever um livro premiado quatro décadas depois, a gente vive muitas histórias. Vou procurar compartilhar algumas aqui.
A de hoje aconteceu quando, na segunda metade da década de 80, eu decidi morar em Colatina (ES) com minha família para que minha mulher ficasse mais perto da mãe dela e acabei convidado para chefiar a sucursal de A Gazeta, com 28 municípios no meu radar. Apoio da empresa não faltava e eu me soltava, porque, afinal, reportagem foi o que eu sempre gostei de fazer.
Publiquei, originalmente, a crônica em outro blog que criei com o mesmo nome desse, mas em outra plataforma e ao qual não tenho mais acesso, a não ser via links para reler o que nele escrevi. A propósito, o lugar onde tudo aconteceu foi na roça, em Vila Itaperuna (na foto de Gilberto Gil), Barra de São Francisco.
Boa leitura..
A mulher que paria cobras
José Caldas da Costa*
Deixei a posição confortável no posto avançado da redação do jornal, no Noroeste do Espírito Santo, e viajei 150 quilômetros para meu maior desafio profissional: descobrir o que havia por trás da comoção social que se abatera sobre uma cidade inteira desde que surgiu a primeira informação de que uma mulher estava parindo cobras.
Precisava ser honesto tanto com a protagonista, quanto com aquela comunidade e com os milhares de leitores do jornal onde eu trabalhava. Precisava dar seriedade a um fato por si só jocoso. Precisava respeitar o ser humano por trás da mulher simples, lavradora, morando numa casa humilde num grotão à margem esquerda do rio São Mateus, aonde cheguei passando de carro sobre uma ponte que era apenas dois mourões deitados sobre o vão de um dos afluentes.
Precisava respeitar a reputação dos médicos que a atenderam mais de uma vez e, ao mesmo tempo, preservar a minha própria. Dependendo do que fizesse, jamais seria levado, novamente, a sério em minhas reportagens e poderia procurar outra profissão.
Primeiro, vieram os telefonemas da cidade para o próprio escritório que eu chefiava. A Redação, na sede do jornal, não levou a história a sério. Minha editora de setor, profissional experiente, riu do fato. Recolhi minhas ferramentas. Mas o caso voltou a se repetir e dessa vez a comunidade telefonava não mais para mim, mas direto para Vitória, gerando uma demanda para que eu fosse, então, verificar o que estava havendo.
Viajei ansioso e sozinho. Tinha meus contatos em cada cidade da região e eles confirmaram que a comunidade estava em pânico. Falava-se de delírio a coisas do demônio. Havia um profundo incômodo. E eu ficava imaginando: e a cabeça dessa mulher? E o marido? Será que ela tinha outros filhos? Quais seriam os apelidos que ganhariam na escola depois disso? Zé Cobrinha? Maria Serpente?
Através dos meus contatos, encontrei fácil a enfermeira que morava na Vila Itaperuna e que, pelo menos por duas vezes, conduziu a mulher com dores de parto para hospitais da região. Os médicos já não queriam atendê-la. A enfermeira disse que viu a mulher parir cobras. E mais: que a mulher tinha as cobras guardadas dentro de vidros grandes em casa. Com um guia local, fui à tal casa.
Encontrei um casal de lavradores muito simples, numa casa sobre um pequeno platô cortado numa ribanceira, aonde se chegava por uma estrada estreita e sinuosa. A casa era cercada de bananeiras e, mais no alto, plantações de café. Percebi que o solo assemelhava-se à terra de minha infância, onde encontrávamos cobras, minhocas e minhocuçus, as famosas cobras de duas cabeças.
Puxei conversa e a mulher parecia assustada. Logo chegou o marido, ainda mais ressabiado. Coitado, ele não entendia nada. Que estranho mistério era aquele? Afinal, o que estaria ele gerando no útero da mulher que escolheu para viver seus dias de maior vigor e com quem pretendia ficar até que a morte os separasse?
Entrei pela casa adentro, sombria, até a salinha onde, sobre o guarda-louças, estavam dois vidros grandes. Dentro deles, as cobras que a mulher pariu. Olhei para os vidros, distingui os minhocuçus, olhei para a enfermeira. Não trocamos palavras, apenas olhares.
A mulher falou das dores uterinas, da dificuldade de transporte, dos médicos tentando evitá-la nos hospitais, da vergonha de não poder mais ir à cidade sem antes ser antecedida pelos fofoqueiros de plantão. Quando passava, os comerciantes chegavam nas portas das lojas, as mulheres corriam às janelas, as crianças corriam, como se brincassem na rua e gargalhavam. Era um drama.
Saí dali com uma história e um desafio: como contá-la aos meus leitores, sem cair no ridículo e sem aumentar o drama da mulher. Descrevi o que vi e relatei o que ouvi do casal, da enfermeira, dos médicos, que não queriam aparecer na história, e de pessoas de diversos segmentos. Mas faltava um fechamento.
Lembrei-me de que o Estado tinha, na secretaria própria, um serviço ligado à saúde mental. Foi minha sorte. Consegui falar com o médico-chefe, Ítalo, um psiquiatra e psicanalista, que deu-me um depoimento belíssimo e cheio de simbologias que remetiam ao inconsciente medieval, representado em figuras pintadas com mulheres de cujas vaginas fluíam cobras aos montes como símbolo do poder feminino.
E, contava-me Ítalo, consciente ou inconscientemente, toda mulher sabe do poder de sua genitália sobre a humanidade. Tergiversou pela biologia para demonstrar a impossibilidade de geração de cobras no útero feminino, cujo comportamento é de expelir aquilo que nele não mais cabe.
Assim, quando crescemos o suficiente, um dia o útero que nos abrigava nos expulsou. Assim, ao ver-se invadido por um corpo estranho, o útero daquela camponesa (para agradar aos comunistas) o expulsava e, somente então, tornava-se público aquilo que havia ocorrido na privacidade dos cômodos daquela casa ou, quem sabe, ao abrigo das bananeiras que sombreavam o platô de terra vermelha.
*José Caldas da Costa é jornalista, licenciado em Geografia e escritor
(Vila Velha, ES, 25 de julho de 2008)
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