*Maciel de Aguiar
Em meados de 1968, o seu nome invadiu a minha inquietação de estudante secundarista e diretor do Grêmio José de Alencar, do Ginásio Estadual Ceciliano Abel de Almeida, na distante cidadezinha de São Mateus, no Norte capixaba — quase perdida no anonimato do país —, onde, de ouvido colado no rádio da sala da casa paterna, ouvi a sua voz instigar os nossos sonhos, desejos e utopias diante daqueles primeiros Anos de Chumbo, que já se manifestavam no aprendiz de escritor que queria mudar o mundo.
Dias depois, durante a “Passeata dos 100 mil”, abraçado à meia altura em um poste da Ligth, na Avenida Rio Branco, no Centro do Rio de Janeiro, diante de milhares de sediciosos, o ouvi, ao vivo, feito um bolchevique das estepes, com os cabelos negros e escorridos, despejando aos ventos palavras em ebulição que incendiavam ainda mais as nossas almas inflamáveis, e não tive dúvida de que ele nos indicaria um rumo, e olha que também ouvíamos os incandescentes discursos de Vladimir Palmeira, Lysâneas Maciel e Carlos Marighella.
E, como presidente da União Estadual dos Estudantes/UEE, foi emocionante vê-lo discursar — também abraçado a um poste da Rua Maria Antônia, entre a Consolação e Higienópolis, em São Paulo —, segurando a camisa ensanguentada do estudante Josué Guimarães, assassinado pela Polícia, e convidando para um dramático velório, e, depois, em outras ocasiões, como nas ocupações de vários centros acadêmicos da USP, PUC e Faculdade de Filosofia, onde a sua voz magnetizava a nossa geração.
Naqueles dias estranhos — quando carregamos nos ombros o féretro de Édson Luís de Lima Souto e o seu sangue derramado invadia as nossas veias —, as ruas foram transformadas em campos de batalha com tiros, tanques, cavalos e cassetetes contra pedras, paus, coragem e poemas, mas o regime militar recrudesceu a repressão e vieram as prisões para averiguação, a cassação dos direitos políticos, a tortura, o banimento, o desaparecimento e, até hoje, muitos corpos não tiveram direito à sepultura. E, depois disso, não mais o vi!

No início da década de 1970, morando nas pensões de terceira categoria na Lapa, Catete e Gamboa, no Rio Antigo — quando escrevia em quase desespero milhares de versos panfletários, na semiclandestinidade, imprimia livretos em um mimeógrafo a álcool e tinha a morte lambendo os calcanhares —, soube que ele havia sido preso no “Congresso de Ibiúna”, mas, libertado com outros companheiros em troca do embaixador norte-americano, Charles Burke Elbrick, foi viver em Cuba, retornou ao Brasil e vivia na clandestinidade.
Com a Anistia e a volta dos desterrados, o vi, novamente, na véspera de meu aniversário, discursar no Colégio Sion, em São Paulo, no lançamento do “Movimento Pró-PT”, e, definitivamente, me convenci de que se tratava do melhor quadro da esquerda para governar o Brasil — ao tempo em que surgia o maior líder dos operários do ABC Paulista —, e ele devotou a Lula uma impressionante “fidelidade canina”, e, juntos, provaram os sabores das vitórias e os dissabores das derrotas, mas jamais se separaram na ação política.
Hoje, após 55 anos de quando o ouvi pela primeira vez pela voz fanhosa do rádio e abraçado a um poste a inquietar as nossas almas infantes, recebi, pelo WhatsApp, uma sua corajosa e providencial entrevista, ao tempo em que tenho uma estranha percepção de que — assim como não entendemos no passado que ele seria o melhor nome para conduzir essa bela e extraordinária aventura chamada civilização brasileira —, também não iremos compreendê-lo no presente e, pior, vamos continuar entregando o poder ao “tranco da direita”.
E, ao ler e reler as suas sábias palavras e assistir ao vídeo, recordo dos meus primeiros vinte anos — como se estivesse vendo-o discursar, nos incendiar e nos indicar um rumo —, mas lamento que estamos repetindo os erros dos tempos pretéritos e recentes, refazendo as velhas inconsequências e nos deixando levar pela comodidade obsequiosa dos covardes e dos omissos, além dos interesses fisiológicos, como se ninguém estivesse prestando atenção nos atos praticados e, pior, acreditando que o poder não flui pelos vãos dos dedos.
Somente um cidadão digno, de uma imensurável coerência — embora sendo vítima de um orquestrado massacre moral que o levou a uma dolorosa dor e, mesmo assim, manteve-se “fiel a Lula feito um cão” —, seria capaz de dizer o que pensa do governo do PT e criticar o partido que ajudou a construir, no momento em que muitos procuram sedimentar as suas conveniências e fazer as composições para garantir os seus interesses, e dizer: “Temos condições de construir um partido à altura do desafio que temos pela frente!”
Assim, o nosso personagem fez as mais duras, porém necessárias, reflexões que somente os que possuem uma longa trajetória de lutas em defesa da liberdade e da democracia seriam capazes de fazer — mesmo entendendo a “necessidade da governabilidade” —, e, sobretudo, acreditar que “é possível refazer os rumos” para compreender que o poder não é eterno, e que é preciso avaliar as ações sob pena de não contribuirmos para justificar os nossos atos e ou não termos o que responder quando nos pedirem contas do que realizamos.
E o nosso personagem teve a ousadia de dizer que “vivemos um momento de cooptação no parlamento” — instigou ao debate perguntando se “há medo da mobilização da militância” — e disse que “é preciso mudar o Brasil, fazer uma reflexão, realizar um planejamento para os próximos anos” e, principalmente, pediu que as correntes internas do PT “se reorganizem, se reanimem, pois não se pode tampar o sol com a peneira”, instigando a volta da discussão política, conforme a sua oportuna entrevista divulgada pelo jornal Metrópoles, anexo.
Afirmou, também, que “mesmo sem querer, é preciso fazer uma reavaliação do governo, pois tem uma realidade no país que precisamos discutir, debater” e perguntou: “Por que não se pode discutir? E se disse “com uma sensação que se começamos discutir se fica inconveniente, indesejado”. Mesmo sem querer entrar em “colisão”, voltou a demonstrar a sua enorme lucidez e disse: “E se o nosso governo tem problema de governabilidade, organização, de avaliação de cada ministério, onde se pode discutir isso ou não se pode discutir?”
Os que não possuem a sua honestidade intelectual, o seu pragmatismo e muito menos a sua devoção à política — para a qual dedicou a sua existência — ou os que não conseguem disfarçar a inveja, a calúnia, o rancor e o despeito, podem, e devem, criticá-lo com o sangue nos olhos e o fígado na boca, até mesmo por ele “despertar as mais primitivas intenções”, como revelou um de seus desafetos, mas ninguém é capaz de questionar a sua coerência, sua fidelidade, sua imensurável capacidade e sua inigualável história de vida.
Zé Dirceu fez o que a rapaziada das quebradas diz: “Deu o papo!” E foi um “papo reto”! Quem não gostou ou se sentiu ofendido tem todo o direito de espernear, reclamar e até de não concordar com o autor desse texto, mas ninguém ficará indiferente a sua coerência, pois — queiram ou não — estamos diante do maior formulador da política na História do Brasil, e ele ainda é capaz de se abraçar a um poste, em uma rua qualquer, para instigar as pessoas, fazê-las pensar e acreditar em seus sonhos, desejos e utopias!
Maciel de Aguiar, escritor das barrancas do rio que o gentio chamou de Kiri-Kerê – São Mateus (ES)
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