José Caldas da Costa*
O Rio de Janeiro não é para amadores. Desde a visibilidade dada às organizações criminosas, no início do século, com a publicação do livro “A Elite da Tropa” que inspirou os dois filmes “Tropa de Elite”, cada vez mais a Cidade Maravilhosa tem suas entranhas reveladas.
Outro filme, “Cidade de Deus”, trouxe à tona a desestruturação social da cidade, que levou ao surgimento de guetos controlados, inicialmente por traficantes e, a partir de um certo momento, por milicianos – agentes treinados pelo Estado e que se associaram ao crime.
O documentário “Vale o Escrito”, disponível no aplicativo Globo Play em sete episódios, mergulha no mundo do jogo do bicho, mostrando seu poder sobre a cidade, e suas organizações, e a sua relação com as escolas de samba cariocas – o que não chega a ser novidade, mas desce a detalhes muito interessantes – e revela a estrutura de máfia por trás do mundo da contravenção fluminense.

É um documentário dirigido de forma competente por Pedro Bial e que mostra, de forma nua e crua, a guerra por trás do jogo do bicho. Capos como Capitão Ailton Jorge Guimarães (de torturador da ditadura militar a chefão da máfia carioca), Anísio Abraão, Castor de Andrade, Waldemir Garcia, o Miro, e o folclórico José Caruzzo Escafura, o Piruinha, que já chega aos 94 anos, são evidentes no documentário.
A série é um tratado de como funciona a máfia carioca e entra fundo na guerra dos sucessores na medida em que os membros da cúpula vão morrendo. Trata de intrigas familiares, violência e corrupção, envolvendo contraventores, milicianos, policiais de todas as esferas, políticos, advogados, juízes e até gente dos tribunais estaduais e federais. E muito dinheiro em jogo.
“Metade da polícia está comprometida e a outra metade treme”, revela um delegado. A jornalista Vera Araújo, que cobre o dia a dia do bicho e das milícias, salienta a facilidade que os advogados de Rogério Andrade, sobrinho de Castor de Andrade, têm para conseguir livrar seu cliente, por meio de habeas corpus até em tribunais superiores,, das seguidas prisões feitas por operações do Ministério Público junto com o GAECO – a polícia especializada em combater o crime organizado.
A segunda temporada está sendo preparada, mas ao final da primeira já se tem uma ideia do poder que realmente manda no Rio de Janeiro. E fica uma sensação definitiva de que “a Cidade Maravilhosa não tem mais jeito”. Se ficar, a milícia come; se correr, o bicho pega. Além disso, ainda tem o tráfico.
Vale ressaltar o bom trabalho feito por jornalistas da velha escola de reportagem investigativa, ainda que jovens. “Vale o Escrito” traz a emoção do vídeo e trabalha do bicho para a milícia, enquanto o livro “Milicianos: como agentes formados para combater o crime passaram a matar a serviço dele”, do jornalista Rafael Soares, constrói o caminho da formação da milícia e de seu encontro com o bicho.
Mais que isso, livro e documentário mostram que, nessas alturas, a milícia é parte também do exército civil dos capos do bicho.
*O autor é jornalista há cinco décadas
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