
“Basta a vida te mandar nascer no lugar errado, com gente errada, não importa o quanto de direitos tenhas, estás condenado. Ando meio chateado com a, perdão da palavra, sacanagem humana”. O desabafo do professor e antropólogo angolano Zakeu Antonio Zengo, chanceler do Instituto Metropolitano de Ensino Superior de Luanda acerca dos danos da tragédia da Líbia e suas causas demonstra bem o desencanto de quem anda atento ao que vem acontecendo no mundo, em especial nas regiões mais pobres.
Mais de 20 mil pessoas já morreram, de acordo com as estatísticas mais atualizadas, em função da grande tragédia que se abateu sobre o País do Norte da África, mais em decorrência do descaso com a vida humana do que, propriamente, com o grande temporal que ocorreu na região. Reportagem da CNN Brasil demonstra que há muito mais mazelas por trás dessa tragédia e que guardam muita semelhança com a experiência recente do Brasil, apenas com menos mortes do que por lá – e que nem precisaram de chuvas para acontecerem (casos de Mariana e Brumadinho).
Construídas nos anos 70 por uma empresa da extinta Iugoslávia, as duas barragens que romperam, provocando a tragédia, não passam por manutenção desde 2002, de acordo com informações do vice-prefeito da cidade, Ahmed Madroud, à Al Jazeera.
Conta a CNN que tudo começou com um estrondo às 3 da manhã (horário local) de segunda-feira (11), enquanto os moradores de Derna, no leste da Líbia, dormiam. Uma barragem se rompeu, depois uma segunda, enviando uma enorme onda de água que desceu pelas montanhas em direção à cidade costeira, matando milhares de pessoas enquanto bairros inteiros eram arrastados pelo mar.
Pelo menos 5 mil pessoas na Líbia foram mortas pelas inundações desta semana, disseram os Médicos Sem Fronteiras em comunicado divulgado na quinta-feira (14), revisando uma estimativa anterior. Os números, porém, começam a ser atualizados na medida em que o mar devolve os corpos. A estimativa já é de 20 mil pessoas.
A cidade de Derna, epicentro do desastre, tinha uma população de cerca de 100 mil habitantes antes da tragédia. As autoridades dizem que pelo menos 10.000 continuam desaparecidos. A CNN não conseguiu verificar os números de forma independente.

Prédios, casas e infraestruturas foram “destruídas” quando uma onda de 7 metros atingiu a cidade, de acordo com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), que afirmou na quinta-feira que os cadáveres estavam agora voltando à superfície da costa.
Mas com milhares de mortos e muitos mais ainda desaparecidos, há dúvidas sobre a razão pela qual a tempestade que também atingiu a Grécia e outros países causou tanto mais devastação na Líbia.
Os especialistas dizem que, para além da forte tempestade em si, a catástrofe da Líbia foi grandemente exacerbada por uma confluência letal de fatores, incluindo o envelhecimento, a desintegração das infraestruturas, os avisos inadequados e os impactos da aceleração da crise climática.
TEMPESTADE FEROZ
As chuvas extremas que atingiram a Líbia no domingo (10) foram provocadas por um sistema chamado Tempestade Daniel.
Depois de varrer a Grécia, a Turquia e a Bulgária, com graves inundações que mataram mais de 20 pessoas, transformou-se num “medicane” sobre o Mediterrâneo – um tipo de tempestade relativamente rara com características semelhantes a furacões e tufões.
O medicane se fortaleceu ao cruzar as águas excepcionalmente quentes do Mediterrâneo, antes de despejar chuvas torrenciais na Líbia no domingo.
Trouxe mais de 414 mm de chuva em 24 horas para Al-Bayda, uma cidade a oeste de Derna, um novo recorde.
Embora seja muito cedo para atribuir definitivamente a tempestade à crise climática, os cientistas estão confiantes de que as alterações climáticas estão aumentando a intensidade de fenômenos meteorológicos extremos, como as tempestades.
Os oceanos mais quentes fornecem combustível para o crescimento das tempestades, e uma atmosfera mais quente pode reter mais umidade, o que significa chuvas mais extremas.
As tempestades “estão tornando-se mais ferozes devido às alterações climáticas”, disse Hannah Cloke, professora de hidrologia na Universidade de Reading, no Reino Unido.
HISTÓRICO DE INUNDAÇÕES
Derna é propensa a inundações, e os reservatórios de suas barragens causaram pelo menos cinco inundações mortais desde 1942, a última das quais ocorreu em 2011, de acordo com um artigo de pesquisa publicado pela Universidade Sebha da Líbia no ano passado.
As duas barragens que se romperam na segunda-feira foram construídas há cerca de meio século, entre 1973 e 1977, por uma construtora da Iugoslávia.
A barragem de Derna tem 75 metros de altura e capacidade de armazenamento de 18 milhões de metros (4,76 bilhões de galões). A segunda barragem, Mansour, tem 45 metros de altura e capacidade de 1,5 milhão de metros (396 milhões de galões).
Mas os problemas com as barragens eram conhecidos. O jornal da Universidade Sebha alertou que as barragens em Derna tinham um “alto potencial de risco de inundação” e que é necessária manutenção periódica para evitar inundações “catastróficas”.
“A situação atual no reservatório de Wadi Derna exige que as autoridades tomem medidas imediatas para realizar a manutenção periódica das barragens existentes”, recomendou o documento no ano passado.
“Porque no caso de uma grande enchente, o resultado será catastrófico para os moradores do vale e da cidade.”
Também constatou que a área circundante carecia de vegetação adequada que pudesse prevenir a erosão do solo. Os moradores da área devem ser alertados sobre os perigos das inundações, acrescentou.
Liz Stephens, professora de Riscos Climáticos e Resiliência na Universidade de Reading, no Reino Unido, disse à CNN que havia sérias questões a serem feitas sobre o padrão de projeto da barragem e se o risco de chuvas muito extremas foi levado adequadamente em consideração, acrescenta.
“É muito claro que sem o rompimento da barragem não teríamos visto o trágico número de mortes que isso resultou”, disse ela.
“As barragens teriam retido a água inicialmente, e a sua falha potencialmente libertaria toda a água de uma só vez”, disse Stephens também ao Science Media Center, acrescentando que “os detritos apanhados nas águas das cheias teriam aumentado o poder destrutivo”.
Derna foi atingida no passado e a sua infraestrutura foi destruída por anos de combates.
Desde a luta contra o Estado Islâmico e, mais tarde, contra o comandante oriental Khalifa Haftar e o seu Exército Nacional Líbio (LNA), na chamada “Primavera Árabe”, a infraestrutura da cidade desmoronou e é lamentavelmente inadequada face a inundações como a provocada pela tempestade Daniel.

FALTA DE AVISOS
Melhores avisos poderiam ter evitado a maioria das vítimas em Derna, disse o chefe da Organização Meteorológica Mundial das Nações Unidas, Petteri Taalas.
“Se houvesse um serviço meteorológico operando normalmente, eles teriam emitido os avisos e também a gestão de emergência teria sido capaz de realizar a evacuação das pessoas e teríamos evitado a maioria das vítimas humanas”, disse Taalas a repórteres em uma entrevista coletiva na quinta-feira.
Talaas acrescentou que a instabilidade política no país impediu os esforços da Organização Meteorológica Mundial (OMM)para trabalhar com o governo líbio para melhorar estes sistemas.
No entanto, mesmo sistemas robustos de alerta precoce não são uma garantia de que todas as vidas possam ser salvas, disse Cloke.
As falhas de barragens podem ser muito difíceis de prever e são rápidas e ferozes, disse ela à CNN. “Há um volume monstruoso de água que destrói completamente a cidade”, disse Cloke. “É um dos piores tipos de inundação que já aconteceram.”
Embora as barragens sejam geralmente projetadas para resistir a eventos relativamente extremos, muitas vezes isso não é suficiente, disse Cloke. “Deveríamos estar nos preparando para eventos inesperados, e então você coloca as mudanças climáticas no topo, e isso aumenta esses eventos inesperados.”
O risco que condições meteorológicas extremas provocadas pelo clima representam para as infraestruturas – não apenas para as barragens, mas para tudo, desde edifícios até ao abastecimento de água – é global. “Não estamos preparados para os eventos extremos que se aproximam”, disse Cloke.
(Da Redação com informações da CNN Brasil)
Foto da capa: REUTERS/Mohamed Abd El Ghany
Comente este post