A Ordem dos Advogados do Brasil, seção do Espírito Santo (OAB-ES), enviou ao presidente da Assembleia Legislativa, deputado Erick Musso (Republicanos), um ofício de protesto e pedido de revisão da realização de uma sessão em homenagem ao golpe militar de 1964, que instituiu a mais longa noite política da história da República Brasileira, durante 21 anos.
A sessão está prevista para as 10 horas de quinta-feira, 31 de março, data em que os quartéis comemoram o golpe civil-militar que depôs o presidente constitucional João Goulart e colocou no poder o primeiro dos presidentes generais, marechal Castelo Branco, que foi sucedido por outros quatro – Costa e Silva, Emílio Garrastazu Medici, Ernesto Geisel e João Baptista Figueiredo -, até a eleição do primeiro civil, ainda de forma indireta, com posse em 1985.
A proposição da sessão foi do deputado Capitão Assumção, assumidamente um defensor do regime que perseguiu, prendeu, torturou e matou brasileiros e brasileiras, além de cassar mandatos políticos e fechar não apenas o Congresso Nacional mas também o Supremo Tribunal Federal (STF). O deputado é o mais notório bolsonarista da Assembleia Legislativa do Espírito Santo, fazendo eco a tudo aquilo que o Presidente Jair Bolsonaro defende contra a democracia e negando a Ciência durante a pandemia de Covid.
O proponente está querendo fazer homenagens a “personalidades” que apoiaram ou apoiam o que ele chama de “Revolução de 1964”, mas que o mundo inteiro reconhece como um golpe. De acordo com informações de dentro da Assembleia, a proposição foi para uma sessão especial, na qual, segundo o regimento da Casa, não pode haver honrarias.
DEPUTADA REQUER ANULAÇÃO
A deputada estadual Iriny Lopes (PT), que votou a favor do requerimento sem saber do que ele se tratava – é comum que esse tipo de votação seja por “pacote”, entrou com um requerimento de cancelamento da sessão requerida por Assunção. Tanto o requerimento de Iriny quando o da OAB-ES serão lidos na sessão da manhã desta quarta-feira (30). De acordo com a assessoria de imprensa da Presidência da Assembleia, a sessão deverá ser presidida por Erick Musso, diante do grande desgaste que o tema trouxe à Casa.
Em seu perfil no Instagran, a deputada Iriny anunciou seu pedido à Mesa Diretora: “Entrei com requerimento para cancelar sessão especial que pretende homenagear os 58 anos da ditadura militar. É uma afronta à legislação brasileira, já que fere a Lei de Crimes de Responsabilidade (Lei Federal nº. 1.079/50), no Código Penal, entre outras, e ofende familiares de vítimas do regime de exceção que se instalou por meio de golpe militar entre 1964 e 1985”.
E completou: “Centenas de mortos e desaparecidos durante o regime ditatorial, perseguição política, destruição da democracia. Ainda que tal sessão tenha sido aprovada, a Assembleia não pode ignorar que tal evento, além da ilegalidade, ataca os direitos humanos. Uma Casa de Leis não deve tolerar ataques à democracia e ignorar esse período triste da história desse país, em que pessoas foram perseguidas, torturadas e mortas.
Pela vida, pela paz, tortura, mortes, ditadura nunca mais!”
Em seu ofício a Erick Musso, o presidente da OAB-ES, José Carlos Rizk Filho, enumera alguns dos atos praticados pela ditadura militar, o que, por si só, já se justificaria uma revisão da realização da sessão. Em um dos trechos, salienta que “é prudente destacar que a representatividade social perpassa pelo reconhecimento de marcos históricos relevantes à formação da sociedade, o que, sem dúvidas, não olvida o estudo de determinados períodos históricos de maneira sóbria, autorizando as críticas úteis e necessárias ao engrandecimento do espírito democrático. Pois é esse o norte que deve conduzir qualquer atuação dos Poderes Constituídos: a promoção, a proteção, o estímulo, enfim, a valorização completa e absoluta da Democracia”.
A notícia sobre a sessão solicitada pelo Capitão Assumção e aprovada em plenário sem contestação foi publicada pela coluna De Olho no Poder, da jornalista Fabiana Tostes, no site Folha Vitória, a quem a assessoria do deputado negou-se a fornecer a lista de homenageados, elaborada ao arrepio do regimento interno.
REQUERIMENTO DA OAB
O documento assinado por Rizk, protestando contra o evento, foi enviado a Erick Musso e compartilhado em grupo de troca de mensagens da OAB-ES e chegou ao conhecimento da Tribuna Norte-Leste, que o publica na íntegra abaixo:
“Vitória/ES, 29 de março de 2022.
Ofício GP. Nº 120/2022
Excelentíssimo Senhor
Erick Musso
Presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo
A ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SEÇÃO DO ESPÍRITO SANTO, neste ato
representada por seu Presidente, vem, respeitosamente, perante Vossa Excelência,
considerando o requerimento realizado pelo Deputado Capitão Assumção, tombado sob o n°
de processo 1097/2022, protocolado em 04/02/2022, de Sessão Solene/Especial em alusão aos
58 anos da ditadura militar de 1964, que ocorrerá no dia 31 de março de 2022, às 10 horas, no
Plenário Dirceu Cardoso, requerer a revisão dessa sessão solene pelos motivos a seguir.
No empenho de implementar as suas missões institucionais, a ALES deve preconizar pela
ampla representatividade de seus eventos, notadamente, as “sessões solenes”, que só podem
ocorrer em número total de duas por ano (art. 4º, III e parágrafo único, do RIALES).
Nesse sentido, é prudente destacar que a representatividade social perpassa pelo
reconhecimento de marcos históricos relevantes à formação da sociedade, o que, sem dúvidas,
não olvida o estudo de determinados períodos históricos de maneira sóbria, autorizando as
críticas úteis e necessárias ao engrandecimento do espírito democrático. Pois é esse o norte que
deve conduzir qualquer atuação dos Poderes Constituídos: a promoção, a proteção, o
estímulo, enfim, a valorização completa e absoluta da Democracia.
Em sentido contrário a essas premissas é a propositura de uma (das duas possíveis no ano)
“sessão solene” destinada a “homenagem ao Golpe Militar de 1964”. Sabemos que Vossa
Excelência, como pessoa pública, detém conhecimentos sobre o período, não obstante, com as
devidas vênias, fazemos registros de necessários episódios que precisam ser constantemente
rememorados, com vistas a evidenciar o que não é exercício de Democracia. Passo a destacar.
Logo após a instauração do golpe militar no dia 1º de abril de 1964, foi registrada uma série de
ocorrências. Entre elas, a prisão de mais de cinco mil pessoas, além de vários casos de civis
que sofreram brutalidades e torturas por parte dos militares. Isso tudo só ao longo de abril, o
primeiro de 240 meses de duração da ditadura.
Com o Ato Institucional nº 5 (AI – 5), a partir de 1968, foi suspensa a garantia do habeas corpus,
mecanismo que ajudava a garantir a vida e, por vezes, liberdade, de presos do regime.
Entre 1964 e 1973, pessoas foram punidas “com perda de direitos políticos, cassação de
mandato, aposentadoria e demissão”.
A tortura era utilizada por agentes do regime como meio de “dissuasão, de intimidação e
disseminação do terror entre as forças de oposição”.
Limito-me a rememorar poucos eventos deste período que remonta um tempo catastrófico e
que não deve ser retomado, pois são suficientes a evidenciar que a medida (autorização de
ato solene) é ato administrativo que carece de legitimidade, porquanto não arvorado no
princípio da moralidade pública (art. 37 da CRFB), como também é colidente com o
ordenamento jurídico, em especial, os arts. 13 , 15 e 23 , todos da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), internalizada no Direito Pátrio mediante
Decreto nº 678/1992, com status supraconstitucional e, portanto, imperativo.
Esta Instituição justifica o presente ofício não só nas razões alinhavadas, mas, ainda, para que
não se olvide a titularidade desta, como indispensável à justiça (art. 133 da CRFB), sobretudo
na (art. 44 do EOAB) defesa da Constituição, do Estado Democrático de Direito, dos direitos
humanos e da justiça social, como bens jurídicos indisponíveis e que levam ao posicionamento
deste Órgão, legitimado à proteção de anseios sociais.
Na certeza da acolhida, aproveito o ensejo para renovar os votos de estima e consideração,
registrando que é de conhecimento público e notório da sociedade capixaba o
comprometimento de Vossa Excelência com as missões institucionais da Casa Legislativa
Capixaba.
Atenciosamente,
José Carlos Rizk Filho
Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção do Espírito Santo”
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