*José Caldas da Costa
É emblemático o que o Espírito Santo vive no âmbito da segurança pública.
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Um dia, em meados dos anos 90, hospedei-me na casa de uns parentes de minha mulher na zona Oeste do Rio de Janeiro.
Ao lado do condomínio, havia uma comunidade e a pergunta sobre segurança foi inevitável.
A resposta carregava um misto de “ingenuidade” e complacência, já que se tratava de um servidor federal de uma força de segurança: “Vagabundo ali não se cria. A milícia controla”.
Era como se a milícia, tão marginal quanto o narcotráfico, fosse uma “instituição política”, fizesse parte do sistema.
“Tropa de Elite”, o filme (2007), inspirado em “Elite da Tropa”, o livro, colocou o dedo na ferida. O caminho, porém, foi aberto por “Cidade de Deus” (2002). A arte imitando a vida e nela se imiscuindo.
“Pixote – a lei do mais fraco”, lançado em 1981 e estrelado por Marília Pera, tinha outro viés, mas também provocou reflexões em tempos ainda de “liberdade limitada” – como exemplo, atentados da “direita explosiva”, como o do Riocentro.
O destino do ator Fernando Ramos da Silva, o “Pixote”, em 1987, parecia cumprir a profecia do filme antes da série dos anos 2000.
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Voltemos a um pouco da gênese do Espírito Santo dos dias atuais e sua vulnerabilidade.
A conjuntura piorou muito depois da greve da Polícia Militar em 2017, que serviu como um grande laboratório de interesses difusos e muito distantes do que poderíamos chamar de republicanos e democráticos.
Diríamos que aquele movimento realizou muitos interesses pessoais e nenhum dos coletivos – nem mesmo da massa de manobra em que se transformou o grosso da corporação, enquanto a sociedade vivia o caos numa nau à deriva, cujo comandante fugiu no bote salva-vidas.
Enquanto o anjo da morte rondava a periferia, num massacre “plenamente justificado” pela narrativa da guerra de quadrilhas do narcotráfico, quando em muitos casos já eram os protótipos de milicianos “passando o cerol em vagabundo”, a população era prisioneira em suas próprias casas.

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Conforme explicado pela neurociência, o que acontece com um ser humano acuado? O sequestro da amígdala pelo sistema límbico e a redução abrupta da capacidade de uso do córtex pré-frontal.
Traduzindo: entra em colapso a “válvula” que controla as reações emocionais para que o lado racional prevaleça.
Com a amígdala sequestrada, anulamos a razão e damos vazão à emoção, muitas vezes impulsionados pelo cérebro reptiliano, que determina nossos instintos mais primários, os da sobrevivência.
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Em movimentos orquestrados, premeditadamente, cria-se um caos para se “estabelecer uma nova ordem”, como no teatro.
No caso de 2017 no Espírito Santo, o caos foi prontamente instalado como numa catarse coletiva, a ponto de até pessoas como eu, um eterno pacifista, que não acredita na paz armada (a única vez em que utilizei armas foi no serviço militar e, registre-se, as manuseava bem, a ponto de ser medalhado), passar a crer que a solução seria mesmo possuir uma arma legal para me defender. Eu me perdoo.
Felizmente, livrei-me muito rápido da falsa crença por logo percebê-la inócua. E até pelo contrário, conforme comprovado pelo Instituto Sou da Paz: a maior parte das armas aprendidas pelas forças de segurança nas mãos de bandidos, seja do narco ou da milícia, mais recentemente, foi adquirida legalmente por obra e graça da mentalidade que se instalou nos últimos anos nas instâncias decisórias da República.
Pasmem: algumas dessas armas são de Airsoft, aquela brincadeira em que as pessoas simulam combates. Armas de brinquedo adaptadas por criminosos para matar de verdade.
Sem contar que as brincadeiras de combate entre adultos criam uma cultura belicista.
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A “nova mentalidade” se instalou pelas vias democráticas no Executivo e no Legislativo, em todos os níveis, com a mesma velocidade da propagação da Covid19.
Dizem que o vírus da pandemia biológica foi criada em laboratório do outro lado do planeta. Há sérias dúvidas.
Entretanto, restam poucas dessas mesmas dúvidas de que o vírus que adoeceu rapidamente nossa sociedade não tenha sido gerado em laboratórios sociais, como na greve da PM do Espírito Santo. E, ao contaminar, não fez distinções.
Instalada a crença, está pronto o “mercado” para a segunda fase do plano: a “flexibilização” da aquisição de armas pelo cidadão comum, mediante alguns disfarces.
A propósito, é bom refletir que o “laboratório nacional” é uma filial de outro, cujo centro de inteligência está no Hemisfério Norte.
Podemos ser simples, mas não sejamos ingênuos. Um pouco mais e o Brasil teria uma população civil armada e, mentalmente, pronta para seguir as ordens de seus mentores.
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A praga chegou até nós.
No passado, Fradinhos, em Vitória, era um desejado paraíso cercado de remanescentes de Mata Atlântica, no coração da ilha.
Hoje, pode se tornar é um lugar a ser evitado pela proximidade com uma das regiões mais abaladas por recentes episódios de violência, Tabuazeiro, onde moradores começam a trocar o bairro por um “lugar mais tranquilo” e relatam noites insones, deitados no chão, enquanto rajadas de metralhadoras e barulho de tiros pesados ecoam no ar.
Para os moradores, é Alto Tabuazeiro. No popular, a parte mais abalada do bairro é Morro do Macaco, que em janeiro de 1985 assistiu a uma tragédia com dezenas de mortos num deslizamento de terra. Quem morava na zona de risco foi removido para Feu Rosa, na Serra – um processo semelhante ao que originou Cidade de Deus, no Rio de Janeiro.
Alto Tabuazeiro foi o palco de um dos episódios mais sangrentos recentes de enfrentamento entre polícia e delinquentes, com cinco mortos entre estes. Houve tiroteio quando a polícia chegou no bairro, de dia, para apurar denúncia de homens armados no local, uma cena muito comum em diferentes áreas mais remotas na Grande Vitória.
Ali bem perto, a pacata Santa Cecília, de ruas tranquilas, um bairro de classe média-baixa a média-média, vive drama semelhante. Suas vias são rotas para traficantes do complexo da Penha-Itararé, bem como de Santos Dumont, que atravessam no buraco feito no muro do Hospital das Clínicas para usarem o parque municipal como concentração e deslocamento rumo a Tabuazeiro e Morro do Macaco.
Moradores de Maruípe, aquela parte elevada que fica entre as avenidas Maruípe e Coronel José Martins de Figueiredo, relatam sempre muito medo quando há tiroteios entre bandidos cada vez possuindo armas de mais longo alcance. Alguns, estão colocando janelas blindadas.
Tudo isso acontecendo “na porta” do Quartel do Comando Geral e do 1o Batalhão da Polícia Militar.
As diferentes comunidades que circundam o maciço central da capital estão reféns de grupos, que, segundo se diz, já não mais são comandados por bandidos locais, mas vindos do Rio de Janeiro. De Andorinhas, Santa Martha, a toda São Pedro e até Santo Antônio.
Nova Almeida, na Serra, enfrenta toques de recolher diários. Conversas telefônicas noturnas têm, como trilha sonora, rajadas de tiros. A cena se repete em várias regiões da Região Metropolitana.
Sábado é dia de feiras para todo canto, mas no último, às 9 horas da manhã, em Vila Velha, moradores registraram muitos tiros no região do Alecrim, parte de uma longa zona conflagrada que embola desde o bairro Garoto até Primeiro de Maio, passando por Ataide, Ilha das Flores, Santa Rita… no final, sobraram dois mortos e três baleados.
Um dos mortos, um jovem de 19 anos, chegava em casa com a família com as compras para o almoço. Quem tem a culpa de morar em regiões sem as garantias constitucionais (à segurança, por exemplo) paga com a vida.
Durante a semana, incidentes semelhantes aconteceram em Sagrada Família e Chácara do Conde, entre São Torquato e Paul, também em Vila Velha. Sem falar dos problemas da Região 5, romanticamente chamada de “Grande Barra do Jucu”, o paraíso violado.
E Cariacica? Basta morar na periferia do município para saber.
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Se nesse breve relato já é assustador, imaginem numa central de ocorrências das forças de segurança!
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Parece que, enquanto o programa Estado Presente evolui num ritmo aritmético, cheio de boa vontade, a criminalidade cresce em projeção geométrica, com base no terror e na imposição pelo medo.
E causa preocupação o uso de funções relacionadas à segurança para fins de promoção política, ainda que seus ocupantes sejam profissionais de inegável competência e carreiras reconhecidas.
Na segurança pública, entretanto, quando o técnico sucumbe aos interesses político-partidários, o resultado assemelha-se aos obtidos com a greve 2017.
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Nova York tinha índices de criminalidade alarmantes, até aparecer o prefeito Rudy Giuliani para impor política de “tolerância zero” com pequenos delitos. Gerou polêmica, controvérsias, mas deu resultados pelo menos na redução da criminalidade.
Se serve de modelo, não sei. Afinal, são contextos diferentes. Mas pensar na “Teoria da Janela Quebrada” e desestimular o início na vida do crime talvez seja uma boa ideia.
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Enquanto isso, em Vila Velha, a Terceira Ponte faz sombra para o “terminal informal” de vans de transporte clandestino. Não seria o caso de cortar o mal pela raiz?
Não, o Espírito Santo não tem milícia.
Mas no Rio, começou assim mesmo, com a negação.
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O Espírito Santo é muito mais organizado do que o Rio de Janeiro, a Grande Vitória é menos caótica, mas nossas divisas parecem vulneráveis.
O litoral Sul é esconderijo frequente para criminosos cariocas.
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E eu nem falei do crescimento do narcotráfico no interior…
Cachoeiro de Itapemirim, antes mesmo de Vitória, já se transformou, até por conta de sua topografia, em posto avançado de criminosos do Rio de Janeiro. Há muito tempo.
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Mais saturação, mais inteligência policial, ampliar ações preventivas multidisciplinares, integração Estado-comunidade, integração das policias e destas com o sistema de Justiça, menos privilégios e corporativismo nos andares de cima e mais reconhecimento aos andares de baixo das forças de segurança, tolerância zero com a corrupção, especialmente de servidores.
Estes parecem eixos factíveis de se desenvolver e implementar. Seria um bom começo, sem ignorar nenhum movimento marginal.
O direito à segurança pública é constitucional (artigo 144 da CF), dever do Estado e responsabilidade de todos.
*O autor é jornalista há quase cinco décadas, geógrafo, escritor e diretor do site TNL
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