José Caldas da Costa*
A estratégia do presidente Jair Bolsonaro de nomear seu fiel escudeiro, general da ativa Eduardo Pazuello, como secretário de Assuntos Estratégicos, publicado no Diário Oficial da União desta terça, 01.06, tem o claro objetivo de tentar impedir a punição do oficial três estrelas pelo Exército, depois de quebrar a disciplina ao participar de ato político, e encontra um paralelo histórico: a indisciplina de um coronel e o movimento conhecido como 11 de novembro, ocorrido em 1955.
Primeiro, uma leitura da atualidade. Pazuello, que na ativa tem submetido as Forças Armadas a desgaste político, blindou Bolsonaro na CPI da Covid. Depois, participou de ato político ao lado do Presidente no Rio de Janeiro, o que constitui infração disciplinar passível de punição pelo comandante do Exército. Agora, é colocado sob blindagem e, teoricamente, o general somente poderá ser punido pelo próprio Presidente da República, por estar diretamente a ele ligado.
O fato similar aconteceu nos primeiros dias de novembro de 1955, quando a chapa JK-Jango já havia sido eleita em 3 de outubro e enfrentou forte contestação dos setores mais conservadores, capitaneados pela UDN, e inimigos do varguismo.
Na época, a maioria simples garantia a eleição, ao contrário das regras eleitorais atuais, que exigem maioria absoluta (50% mais 1 dos votos válidos). Foi, então, que, com o apoio do presidente Café Filho, vice de Getúlio Vargas (que havia suicidado em agosto de 1954), Carlos Luz, presidente da Câmara, e Nereu Ramos, presidente do Senado, tentou-se um golpe com o apoio de setores militares que viriam a dar, finalmente, o golpe civil-militar de março-abril de 1964.
Numa projeção para 2022, pode-se imaginar a possibilidade de uma chapa de centro-esquerda eleita para o Planalto e enfrentando uma dura contestação (que já se constrói) de setores da extrema-direita, como já se prenuncia desde já sob a liderança do atual ocupante da chefia do Executivo.
Pazuello é a “reencarnação política” do coronel Jurandir Mamede, que, no dia 1º de novembro de 1955, na cerimônia de enterro do general Canrobert Pereira da Costa, presidente do Clube Militar, “proferiu discurso no qual, depois de elogiar Canrobert por sua atuação no movimento contra Vargas, criticou abertamente os candidatos eleitos (JK e Jango) e pronunciou-se contra sua posse”, como registram os dossiês do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas.
Note-se que, desde que participou do ato político com Bolsonaro, o general três estrelas Pazuello, da ativa, está sob questionamento e com sua punição, conforme o regulamento militar, sendo defendida abertamente pelo próprio vice-presidente, general quatro estrelas Antonio Hamilton Martins Mourão, ele mesmo já tendo sido punido durante o governo Dilma Roussef por fazer manifestação política.
O deslize disciplinar de Pazuello expõe o comando do Exército ao mesmo dilema causado por Mamede, então da Escola Superior de Guerra, em 1955. Conversei com um Capitão da reserva, que na época era cabo, e ele me contou que participou pessoalmente do cerco ao Campo dos Afonsos quando o Marechal Henrique Duffles Teixeira Lott liderou o movimento em defesa da legalidade e ocupou o Rio de Janeiro, então Distrito Federal, e cercou o Palácio do Catete, sede da Presidência da República.
Como tudo aconteceu está bem registrado na historiografia brasileira, mas nada melhor do que ouvir a história contada por quem dela participou, como é o caso desse antigo praça, que mais tarde seria expulso do Exército, tomaria parte de movimentos de enfrentamento à ditadura civil-militar brasileira e, na redemocratização, recebeu reparação sendo levado ao posto de Capitão.
Com o suicídio de Vargas, em agosto de 1954, assumiu o vice-presidente Café Filho. Quando estourou a crise provocada por Mamede, da Escola Superior de Guerra, ligada diretamente à Presidência da República (exatamente como Bolsonaro coloca agora Pazuello), o marechal Teixeira Lott, ministro da Guerra, seguindo o regulamento, pediu a Café Filho a punição do coronel. Café Filho, para não enfrentar a situação, alegou problemas de saúde e afastou-se da Presidência, que passou a ser ocupada pelo deputado Carlos Luz, presidente da Câmara, com notório trânsito junto aos udenistas.
Lott foi a Carlos Luz e ofereceu duas alternativas, segundo me contou esse hoje oficial da reserva: punir o coronel indisciplinado ou devolvê-lo ao Exército para que fosse punido. Carlos Luz não aceitou nenhuma das alternativas e Lott pediu demissão do Ministério, no dia 10 de novembro. Mas, quando chegou em casa, à noite, o marechal recebeu a solidariedade do alto comando do Exército, com um conselho: “Isso é um desaforo, ocupa o Rio de Janeiro”.
E foi o que Lott fez, assumindo na madrugada do dia 11 o movimento deflagrado pelos generais Odilio Denis, comandante do Comando Militar do Leste, e Olímpio Falconière, comandante do Comando Militar Centro. O Distrito Federal foi tomado pelas forças militares em defesa da legalidade. Carlos Luz, alguns ministros, Carlos Lacerda e o coronel Mamede, entre outros, zarparam no Cruzador Tamandaré às 9 da manhã para Santos. O Congresso Nacional declarou vaga a Presidência da República e designou o vice-presidente do Senado, senador Nereu Ramos, para o cargo.
Nereu reafirmou Lott no Ministério da Guerra e, quando tudo parecia estar sendo bem conduzido, Café Filho “melhorou” e quis voltar ao cargo, depois de, notoriamente, ter participado de toda a articulação golpista da UDN para evitar a posse da dupla eleita pela chapa PSD-PTB no comando da Nação. Para contornar a instabilidade, a Câmara e o Senado votaram resolução que afastava Café Filho definitivamente da Presidência e o cargo ficou sendo ocupado por Nereu Ramos, que obteve autorização do Senado e decretou estado de sítio por 30 dias.
Assim, com o Marechal Lott por fiador da legalidade no Ministério da Guerra, o TSE homologou a eleição de Juscelino-Jango em 7 de janeiro de 1956, e no dia 30 do mesmo mês eles puderam tomar posse. JK enfrentou, já no cargo, duas outras tentativas de golpe dos mesmos militares ligados à extrema direita udenista, uma em fevereiro de 1956, na Revolta de Jacareacanga, e outra em 1959, a chamada Revolta de Aragarças.
Contornou as duas, sempre tendo o mesmo fiador: Lott. E pôde terminar seu mandato, passando o cargo para o eleito de 1960, Jânio Quadros. Por ironia, Henrique Lott, fiador da legalidade e do governo de JK, foi o candidato da situação e perdeu para Jânio. João Goulart foi reconduzido como vice-presidente (na época, era possível votar no presidente de uma chapa e no vice de outra). O que aconteceu nos quatro anos seguintes é outro capítulo da história.
O que importa, agora, é saber se a estratégia de Bolsonaro de proteger o general Eduardo Pazuello de uma punição, nomeando-o num cargo subordinado diretamente à Presidência, colocará o Comando do Exército e as próprias Forças Armadas de joelhos ou em pé para defender aquilo que sempre foi muito caro para os militares: a disciplina. Quem fará o papel de Lott desta vez?
*José Caldas da Costa, geógrafo, jornalista, pesquisador do regime civil-militar no Brasil, autor de “Caparaó: a primeira guerrilha contra a ditadura”
Comente este post