José Caldas da Costa, jornalista e geógrafo
O mundo parece em chamas. A guerra promovida pela Rússia na Ucrânia conturbou o cenário, mas isso parece ser apenas o lance mais aparente do caos. Na noite de terça-feira, 10, a morte a tiros de segundo colocado na corrida presidencial no Equador, nosso vizinho (sem fronteiras conosco) da América do Sul, é apenas mais um lance do quatro caótico.
Uma organização criminosa ligada ao narcotráfico internacional, nos moldes das que conhecemos por aqui no Brasil, assumiu o atentado contra Fernando Villavicencio, que ainda deixou quase dez outras pessoas feridas e lançou mais uma nuvem sobre o país latino-americano.
A humanidade parece, a cada dia, mais desumanizada. A guerra fria está de volta, agora com os recursos da inteligência artificial, que pode ser usada para o bem, mas também para o mal. No início da década passada, as “primaveras árabes” lançaram luz sobre uma nova modalidade de guerra, a híbrida, em que potências desestabilizavam nações usando seus próprios “recursos internos”.
O Brasil experimentou sua guerra híbrida a partir de 2013 com os movimentos populares sem aparente liderança, mas que, com certeza, beneficiaram grupos e levaram à desestruturação de nossa caminhada de fortalecimento econômico e como nação.
Há outro quadro incendiário que pouco nos chama a atenção, mas que merece ser visto. A história está aí para mostrar que a estabilidade econômica (e social) da Europa atual foi construída com o sangue dos africanos. O Hemisfério Norte desestabiliza o Hemisfério Sul sempre que vê “necessidade”.
Para exemplificar, reproduzimos abaixo um artigo do Diário Independente, publicação de Angola, veiculado nesta quarta-feira 10, que bem demonstra como a África volta a ser vítima nesse quadro. O artigo é baseado em outro, publicado pelo Cenntro de Estudos para o Desenvolvimento Econômico e Social da África (Cedesa).
“Cinturão russo” em África choca interesses de Angola
Os acadêmicos da Cedesa, entidade que analisa Angola, defendem haver um “cinturão russo” a ser criado em África que “choca diretamente com os interesses” regionais de Angola e vai afetar o país. Para a Cedesa, é claro, depois do último golpe de Estado, que ocorreu na semana passada no Níger, mais um país na região do Shael, que há “uma linha quase contínua de leste a oeste de África onde se está a formar um ‘cinturão russo’”.
“Na prática, falta cair o Chade, onde a influência francesa é grande, mas a instabilidade e a existência de grupos de guerrilha já se faz notar”, salienta o grupo de acadêmicos que nasce do Angola Research Network. Assim, não faltará muito tempo para que aquele país fique totalmente cercado, porque a norte, na Líbia, existe “uma forte presença” do grupo privado russo Wagner, como na fronteira sul na República Centro-Africana, a oeste está o Níger e a Leste o Sudão. ”Pode-se antecipar que o Chade está cercado e em breve poderá completar o ‘cinturão russo’”, adianta a Cedesa.
Perante este ‘cinturão russo’ em construção na zona do Sahel africano, os acadêmicos assinalam as suas principais consequências quer globais quer para Angola. ”Angola foi tradicionalmente um aliado russo, um dos principais em África, mas “já não é”, sublinham os acadêmicos. E o atual presidente do país, João Lourenço, tenta colocar o país como uma potência regional próxima do Ocidente e com boas relações com a China e Rússia, mas tentando resolver os problemas africanos em África. Por isso, para o grupo de acadêmicos “torna-se evidente que a criação do ‘cinturão russo’ levanta obstáculos de monta a este desejo de Angola”.
“Com uma Rússia forte na intermediação entre o norte e o sul de África, o papel de Angola como potência regional fica esvaziado, e tudo volta a se resumir aos embates da Guerra Fria, agora renovada”, realçam.
Por isso, defendem: “o ‘cinturão russo’ choca diretamente com os interesses prospectivos regionais de Angola e com o seu desejo de paz e estabilidade no continente”. Depois da promoção que João Lourenço tem feito da normalidade constitucional, e condenando todas as alterações não constitucionais em África, o fato é que “as alterações promovidas pela Rússia são não constitucionais, assentam em golpes de força promovidos pelos militares”.
Perante este cenário em construção, Angola enfrenta ainda um outro problema: “diretamente, a estabilidade e segurança nacional angolana ficaria ameaçada se houvesse qualquer tipo de intervenção na República Democrática do Congo que agitasse ainda mais o país do que já está”, uma vez que faz fronteira com Angola.
Assim, concluem, Angola “não deverá estar a ver com bons olhos o alargamento do ‘cinturão russo’ no Sahel”, apesar das relações cordiais que mantém com o Kremlin. A nível global, a primeira consequência apontada na análise da Cedesa “é a reafirmação política da Rússia”.
“O país demonstra que sabe globalizar uma contenda, não a situando apenas na Ucrânia, mas mundializando-a, reunindo um conjunto de apoios que podem parecer fracos individualmente, mas juntos alcançam extrema relevância estratégica, colocando já em causa a influência francesa na região”, defende a Cedesa. E “a grande derrotada é a França”, podendo a Rússia ainda, no entender dos acadêmicos, projetar outras perdas e outros ganhos estratégicos e económicos.
Em termos estratégicos é sabido que a zona do Sahel tem uma forte e direta importância estratégica para a Europa no combate ao terrorismo e à migração. Assim, “a partir de agora, a Rússia dispõe de uma válvula de pressão em relação à União Europeia em termos de terrorismo e migração, podendo, na prática, aumentar ou diminuir os fluxos migratórios de África para as costas europeias”, realça a Cedesa.
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