*Erly Euzébio dos Anjos
“Acho que o partidarismo e a defesa de uma causa única cegam as pessoas e as impedem de um diálogo construtivo, de enxergar as nuanças e contradições”
A frente ampla do Governo face ao bipartidarismo reinante permite se pensar sobre o papel da militância partidária, uma questão que há muito nos ronda. Pelo menos para aquele que viveu nos anos da Ditadura Militar (1964-1985) e ainda quer pôr em prática uma visão mais crítica dos feitos da atual administração e encabeçada pelo partido dos trabalhadores.
Também considero que a tentativa de se construir a frente em nome da democracia foi e ainda é a melhor forma de não cair na vala comum, do bolsonarismo versus petismo. Um confronto que, quando vai ao extremo, vira um diálogo de surdos em que não há interesse em contestação com argumentos racionais, mas em pura teimosia.
Neste embate, não há a chance de uma avaliação objetiva e crítica para onde vão as ações do Governo com a difícil tarefa de reconstrução política do país. A crença, a idolatria e a tentativa de se maquiar a realidade com falsas informações e, muitas vezes, as mentiras impedem uma visão crítica. Foi assim nos Estados Unidos, com o Donald Trump, aqui com Jair Bolsonaro e agora (ainda a conferir) com o Javier Milei na Argentina.
Com uma frente ampla em nome da democracia, a discussão política tem a rara chance de sair do fla x flu, do bate-boca e se tornar um diálogo, em que uma afirmação é contra argumentada e ambos possam chegar a uma síntese esclarecedora. Assim se constrói um verdadeiro diálogo, enaltece os valores da democracia e promove a liberdade de expressão. E não de se xingarem mutuamente.
Em geral, digo que não torço para nenhum time de futebol, o que me livra de uma discussão, que poderia ser prazerosa, mas que não é. Todo torcedor, quando fanático, só quer enaltecer seus jogadores, só assiste jogos de seus times e sofre quando perde e vive feliz quando ganha. Vive dos resultados, não aprecia outros times, às vezes, não assiste a outros jogos perde uma oportunidade, diria, sadia de apreciar o esporte, como tal.
São os males de se fechar em seu quadrado, de só ter olhos para um lado, de sempre buscar algo positivo, mesmo quando há falhas e imperfeições. Perdem a chance de um olhar mais abrangente, de enxergar a realidade como uma “águia voadora” (de que falava Hegel).
Guardadas as devidas proporções da analogia entre torcedores e a militância política, acho que o partidarismo e a defesa de uma causa única cegam as pessoas e as impedem de um diálogo construtivo, de enxergar as nuanças e contradições.
O romancista português José Saramago mostra isso em seu clássico “Ensaio sobre a Cegueira”, que num determinado lugar todos começam a ficar cegos, como numa epidemia. Param de enxergar, tendo seus olhos cobertos por uma névoa branca e ninguém descobre a causa. Após exames por um médico todos são reunidos num sanatório, sob a liderança do médico que os examinavam que também perde a visão. Apenas sua mulher enxerga, mas mente sobre sua cegueira, para cuidar do seu marido.
Inicialmente, conseguem se reunir e democraticamente administrar a comida e a convivência social pacificamente. Mas quando aumentam o número de pacientes cegos desencadeia a violência, a competição e luta pela sobrevivência num sentido hobbesiano, de cada um para si.
O livro de Saramago, que pode ser visto em um excelente filme homônimo de Fernando Meirelles, mostra magistralmente que a cegueira ensaiada pelo autor não é física, mas moral!
Uma metáfora sutil que demonstra que, ao perdermos a capacidade visual de distinguir identidades, como as pessoas se parecem e de seus status social, agimos selvagemente (com perdão aos selvagens), sem noção civilizatória da vida em sociedade. Cegos, olhamos somente para os nossos próprios umbigos e interesses. Tal como acontece na sociedade em que vivemos com visão das aparências e negando o que há de essencial nos outros e nas coisas.
Sinto isso quando converso principalmente com pessoas envolvidas em seu mundinho, com seus partidarismos exacerbados e entendo ser esta a principal a razão para o afastamento de pessoas de sua convivência com amigos e parentes. Diferenças de opinião e o embate de ideias sempre fizeram partes de conversas amistosas, mas as diferenças que antes pareciam latentes, saíram do “armário” e se manifestam hoje de forma agressiva.
É possível que pessoas não muito informadas politicamente são mais suscetíveis a aceitar acriticamente o que se publica nas redes sociais. O pior é quando reproduzem ou postam o que recebem sem o crivo de se informar mais.
Constato que o país vive um período de transição política delicado, de reconstrução democrática, em que instituições sociais outrora existentes, foram “culpinizadas”, como diria a Senadora e relatora da CPI do 8 de janeiro Eliziane Gama. Perdeu-se o poder de sustentação e falta fiscalização em áreas vitais ao bem-estar coletivo.
Reconheço que ainda há muito o que fazer para retomar a destruição do meio ambiente, as incertezas relativas à segurança pública, a recuperação da saúde pública, da educação, a imagem vilipendiada do país no exterior, entre outras. Mas, neste primeiro ano de gestão, as ações do Governo são ainda tímidas nestes campos e há controversas. Por exemplo, a indicação de ministros para o STF e PGR, em pauta, não deveria ser politizada, seguindo a batuta (do terrivelmente evangélico trocado por amigos-do-peito) do ex-presidente que é combatido.
Explica, mas não se justifica: o interesse de representação da sociedade civil é ainda maior e deve ser levado em conta por um presidente e estadista.
*O autor é sociólogo e professor aposentado da UFES
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