A escritora franco-inglesa Tatiana de Rosnay, 62 anos, autora de 12 romances em francês e em inglês, tem uma frase que bem representa o trabalho de quem se dedica a resgatar as memórias de uma sociedade: “Quando uma história é contada, não é esquecida. Ela se torna outra coisa, a memória de quem éramos, a esperança de quem podemos nos tornar”.
É com esse sentido que deve ser recebido o livro “Máfia Capixaba”, que será lançado no próximo dia 5 de dezembro, às 18 horas, no auditório Hermógenes Lima da Fonseca, na Assembleia Legislativa, pelo jornalista Danilo Sérgio Salvadeo, 74 anos, testemunha ocular do duro período em que o Espírito Santo foi manchete não apenas da imprensa local, mas nacional.
No subtítulo, o jornalista delimita: “1989 a 2003 – Quando o Espírito Santo foi tomado pela corrupção e violência”. Em nível nacional, 1989 foi o marco da volta das eleições diretas para Presidente da República. Era o terceiro ano também do segundo governador diretamente eleito, após o período militar. O Estado era comandado por Max Mauro, do MDB. Também foi o ano da inauguração da Terceira Ponte, ligando Vitória a Vila Velha.
A POLÍTICA DO PERÍODO
No período representado na obra, o Espírito Santo viveu, politicamente, experiências muito distintas. Em 1990, elegia um “outsider” para comandar o Palácio Anchieta, o engenheiro Albuino Azeredo, com apoio do movimento municipalista. Em 1994, um desenho do que viria a ocorrer quase três décadas depois na política nacional.
Um vazio de lideranças se abateu sobre a política estadual e, com um discurso sinistro de justiça com as próprias mãos, utilizando uma “vara de gurubumba para punir os corruptos”, o Estado por muito pouco não caiu numa grande aventura com a candidatura do Cabo Camata ao governo. Acabou eleito o primeiro governador petista do País: o médico e sindicalista Vitor Buaiz.
Tanto Albuino quanto Vitor tiveram finais de governos melancólicos. A criminalidade parecia tomar conta do Estado. As cadeias eram controladas pelos presos. Nas ruas, a explosão da violência urbana, talvez como retrato do que acontecia nas “cavernas” e é retratado por Danilo. Então, elegeu-se em 1998 o senador José Ignácio Ferreira para governar o Estado.
Na Assembleia Legislativa, o comando era exercido pelo deputado estadual José Carlos Gratz, oriundo da contravenção. Eleito pela primeira vez em 1994, ele chegou à Presidência da Assembleia Legislativa e a comandou de 1997 a 2002. Numa entrevista à Folha de São Paulo, resumiu seu sucesso.
“Venho das três coisas mais populares que já existiram: futebol, samba e jogo do bicho”, afirmava ele, que também presidia o Conselho Deliberativo do Rio Branco Atlético Clube e desfilava nas nove escolas de samba do Estado, por razão óbvia: era “patrono” de todas elas.
Em 2003, com José Ignácio sob “torniquete” e sem apoio para disputar a reeleição, quem chegou ao Poder foi o então senador Paulo Hartung. E foi um ano emblemático.

Gratz havia sido reeleito para seu quarto mandato, mas em novembro de 2002, a Procuradoria Regional Eleitoral no Espírito Santo, na época representada pelos procuradores da República Alexandre Espinosa Bravo Barbosa e Henrique Herkenhoff, conseguiu a cassação do registro de candidatura do então presidente da Assembleia Legislativa do Espírito Santo por abuso de poder político na campanha.
Na eleição da Mesa Diretora da nova Assembleia empossada em 2003, uma das cenas mais inverossímeis da política capixaba: o neófito deputado Geovani Silva, que havia brilhado como jogador de futebol na Desportiva, Vasco da Gama, Seleção Brasileira e futebol italiano, foi eleito presidente da Assembleia Legislativa, mas deposto por ação do Ministério Público com direito a invasão policial do plenário para cumprimento da decisão obtida na Justiça.
Embora eleito com apoio da Igreja Maranata, Geovani seria o braço de Gratz no Legislativo Estadual e foi deposto para realização de uma nova eleição, quando um aliado do governador Hartung, o deputado petista Cláudio Vereza, fosse eleito para presidir a Casa.
Seria o início de uma nova fase? Afinal, é 2003 o ano demarcado pelo jornalista Salvadeo para o começo do fim da atuação da máfia capixaba.
Em 24 de março de 2003, foi assassinado o juiz Alexandre Martins, em Itapoã, em Vila Velha. A principal linha de investigação ligou o crime à sua atuação contra o crime organizado no Espírito Santo. Passados 20 anos, nem todos os réus foram julgados
INVESTIGAÇÃO
Em “Máfia Capixaba”, Danilo Salvadeo apresenta uma investigação meticulosa sobre o que foram os violentos anos 90 e início dos anos 2000 no Espírito Santo, um período de 14 anos (1989 a 2003) de crimes impunes e muita corrupção nos poderes constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário). Sua tese principal é que houve uma rede de corrupção profundamente acobertada pelo sistema judiciário que, por anos, prejudicou a Justiça e a integridade do Estado.
A trama se desenrola em torno de escândalos de corrupção, particularmente envolvendo empresários, políticos com e sem mandatos, delegados de Polícia, juízes, desembargadores e até um governador. O enredo se concentra nas investigações, prisões e processos judiciais relacionados a esses escândalos, tendo por trás o braço armado do Crime Organizado no Estado naquela época, a Scuderie Detective Le Coq.
Salvadeo destaca que “este livro-reportagem foi inspirado em fatos conhecidos e pretende ser um retrato fiel da realidade e não usado para determinar responsabilidade legal, pois a verdade processual sobre os fatos nele narrados encontra-se em vários autos”, lembrando que a menção aos nomes dos envolvidos, por já terem sido amplamente divulgados desde as ocorrências dos crimes, não configura uma violação do direito ao esquecimento, na avaliação de Wolfgang Sarlet, coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS e autor do livro “O direito ao Esquecimento na Sociedade da Informação”.
Desde que foram decretadas as prisões preventivas de ex-PMs envolvidos na morte do prefeito José Maria Feu Rosa, de Serra, e o processo, a partir dos depoimentos deles, fardados, ao juiz Márcio Mont’Alegre Públio de Souza, no Fórum de Porto Seguro, até a prescrição, foi um ‘festival de inverdades e ‘chicanas’ jurídicas para desmoralizar o dossiê do ex-PM Rubens Banhos, a família da vítima e até as reportagens de A Gazeta, chegando ao absurdo do juiz Márcio Mont’Alegre – três anos depois afastado da função e preso por acobertar traficantes de cocaína que agiam no paraíso baiano – ter processado o jornalista Danilo Salvadeo por danos morais (a ação foi julgada improcedente pela Justiça do Espírito Santo).
O motivo foi uma reportagem publicada em A Gazeta no dia 20 de abril de 1991, na página 15, informando que o delegado regional de Porto Seguro, Jackson Silva, acusou o juiz de ter recebido Cr$ 3 milhões (R$ 109.091,00) para supostamente dirigir o interrogatório em favor dos réus, visando facilitar uma futura absolvição em caso de julgamento. O recorte do jornal faz parte do volume 2 do processo.
FONTES DE REFERÊNCIA
O autor faz um resumo da obra: “Se eu tivesse escrito este livro-reportagem como ficção, quem sabe não teria ido longe demais da realidade? No entanto, os fatos, meticulosamente pesquisados ao longo de cinco anos, falam por si próprios. Eu vivenciei pelo menos uns 70% do que é narrado no livro, pesquisando para reportagens que fiz no jornal A Gazeta. Os crimes cometidos pela Máfia Capixaba – aí abordei também, dentro do que foi surgindo ao longo dos anos, a velha e a nova máfia no Espírito Santo – não eram apenas um desejo de riqueza, mas uma insana busca pelo poder corrupto”.
E completa: “Para escrever a obra, mergulhei no volumoso inquérito de 20 volumes elaborado pela Polícia Civil da Bahia, e cedido por José Maria Miguel Feu Rosa Filho, que sentiu na carne a perda de seu pai, assassinado brutalmente por esses mafiosos. O que fui descobrindo ao longo de minhas investigações jornalísticas, conversando com criminosos, testemunhas, parentes e amigos das vítimas foi estarrecedor. Uma teia de corrupção, crimes de mando, ameaças etc. Não podia, em respeito às inúmeras vítimas, deixar esta história cair no esquecimento. Fui ameaçado na época e busquei proteção policial. Se a Justiça dos Homens falhou, a Divina, não! De uma forma ou outra, todos pagaram…”.
Em tempo: o lançamento da obra na Assembleia Legislativa tem o apoio da Comissão de Segurança Pública, presidida pelo deputado Danilo Bahiense, que entrou na Polícia Civil em 1986 e tornou-se delegado em 1989 até se aposentar em 2019. Ocupou importantes funções policiais de 1989 a 2003, período retratado no livro. (Da Redação com José Caldas da Costa)
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