
José Caldas da Costa
Os primeiros passos foram incidentais. Primeiro, uma tarde de violão junto com amigos na casa de uma colega de escola quando tinha 13 anos de idade. Como cartão de visitas, uma canção de “outro mundo” para receber os visitantes. Depois, o convite inusitado: “Vocês vão tocar comigo domingo na Igreja”. Ali, tudo aconteceu e lá se vão 40 anos de estrada para Jorge Geraldo de Camargo Filho, 59 anos, ou simplesmente Jorge Camargo, um dos mais produtivos músicos cristãos nessas décadas.
E o trabalho não para. Das músicas “mais litúrgicas”, como ele define composições como “Ajuntamento”, “Farol”, “Muitos virão te louvar”, “Teus Altares” e “Amolece meu coração”, por serem cantadas em cultos e encontros cristãos, à irresistível “Beija-flor”, em parceria com Gladir Cabral, com sua letra desafiadora e melodia envolvente, um samba dizendo as mesmas verdades de forma indireta (ou nem tanto), embalado por um refrão chiclete: “Deixe-se levar pelo amor / Deixe-se molhar pelo mar / Deixe o sal tocar sua dor / Deixe a luz do sol consolar”
“Beija-Flor” é poética e desafiadora:
“Nunca menospreze uma semente / Não despreze o impulso criador / Olhe, prove, ouça, cheire, tente / Como um curioso beija-flor // Não rejeite os tímidos começos / Eles também rumam aos finais / A deselegância dos tropeços / Move a contradança dos casais // Veja o brilho frágil de uma estrela / Ela inspira múltiplas canções /
Em seus filamentos de centelha / Podem se esconder constelações // Baile no compasso das palavras / Salte sobre as linhas das tensões / Sente-se à beira das calçadas / Cante ao som dos velhos violões”

Foi dessa forma que Jorge Camargo, acompanhado de seu inseparável violão e, em algumas canções por músicos da própria comunidade local, emocionou muitos dos que participaram desse encontro intimista e espiritual na manhã deste domingo (27) no templo da Igreja Batista da Praia do Canto, em Vitória.
Foi mais de uma hora para matar saudade da trilha sonora de uma geração de cristão. Pareceu, entretanto, poucos minutos e deixou uma enorme vontade de “ficar em seus átrios”.
VOU ALI E JÁ VOLTO
Com a surpreendente “Pasárgada”, Jorge Camargo é contemporâneo e provocante.
Não quero a glória do mundo / Quero uma terra melhor / Onde o jardim do futuro / Não cheire a medo e suor
Quero um pouquinho de tudo, / Tudo que venha do amor / Planta subindo no muro / Riso num pé de flor
Vento soprando a jangada / Barco no braço do mar / Vou me mudar pra Pasárgada / Lá sou amigo do Rei / Lá a ternura é a ordem e a lei
Quero a verdade da lágrima./ Não quero o gosto do sal / Quero a alegria da trégua / Não quero o gozo do mal
Chega de morte na esquina / Cesse a canção do fuzil / Venha na terra menina / Nova versão do Brasil
Que haja alegria nas ruas / Festa fulia e quintal / Vou para o reino de Atlândida / Vou para a terra sem mal / Vida não mais dividida e desigual
Vou para o Reino de Nárnia / Vou para a Terra de Oz / Onde o ribeiro da paz encontre a foz”
NOVAS PERCEPÇÕES
A canção “Pasárgada” parece comportar os novos tempos da vida de Camargo. “Nos primeiros anos me dediquei a canções mais litúrgicas, mas nos últimos anos minhas novas percepções trouxeram canções que carregam valores e princípios que acredito, de uma forma diferente. Foi assim que nasceu Beija-Flor, que fala de não menosprezarmos aquela sementinha e a força que temos para transformar o mundo”, disse o compositor.
Jorge Camargo não para e mantém a sensibilidade para perceber os tempos bicudos dos dias atuais: “Fiz uma canção nova que fala de reconciliação com o passado, de curar feridas institucionais que levam muitos a guardar mágoas. Tempos em que a espiritualidade é confundida com a religiosidade. Essa canção fala de alguém que num domingo ouve um hino antigo vindo do prédio ao lado e isso o leva a se conectar com sua história”.
Jorge está falando de “Catedral do dia”, em parceria com Gladir Cabral:
“A catedral do dia se iluminou de cores / um raio de alegria no chão de dissabores / e o som da poesia acalentou meu coração // Pelos vitrais eu via o vulto das pessoas / a face que se erguia / um céu de coisas boas / a prece que se ouvia / em forma doce de canção // É Deus quem nos convida / a não ficar sozinhos / a dar e receber a mão / a descobrir caminhos // histórias repartidas, a voz, a mesa, o vinho, o pão // E despertar do sono / e semear paisagem / e não temer a escuridão / e repensar o tempo / saborear o vento / a mais profunda oração // Amanheceu domingo / um dia ensolarado / eu ouço um hino antigo / que vem do templo ao lado // e é como um velho amigo / a me falar de um tempo bom // É Deus quem nos convida / a não ficar sozinhos / a dar e receber a mão / a descobrir caminhos.”
Aos 19 anos, Jorge Camargo recebeu de Guilherme Kerr um convite que foi “como ser convocado para a seleção”: integrar o grupo Semente, que durou até 1987, quando a morte precoce de Sérgio Pimenta, um de seus criadores, fez a continuidade perder sentido. Mas o Semente foi precursor de um novo tempo para a música gospel.
“Éramos um grupo de amigos que uma vez por semana nos reuníamos para fazer música. Foram os tempos da parceria com Guilherme Kerr, depois que comecei a compor em parceria com João Ferreira de Almeida”, brinca Jorge Camargo numa menção às suas primeiras canções compostas com base no texto bíblico de Ferreira.
IGREJA E CULTURA
A dor é a fonte de criação também do compositor gospel. “Eu gosto muito do livro de Salmos por comportar essa montanha russa emocional, êxtase x depressão, como é a vida de todos nós. E saber que em todos esses momentos Deus se faz presente. A dor tem um lugar especial, um lugar e destaque, em minhas composições. A alegria não produz nada, só desfrutamos, mas a dor, a perserverança, isto sim produz”. Filosofa Jorge Camargo.
Sobre o processo de criação, Camargo responde citando Paulo César Pinheiro nos versos de “O poder da criação”, que foi gravada por João Nogueira:
“Força nenhuma no mundo interfere / Sobre o poder da criação / Não, não precisa se estar nem feliz nem aflito / Nem se refugiar em lugar mais bonito / Em busca da inspiração / Não, ela é uma luz que chega de repente / Com a rapidez de uma estrela cadente / Que acende a mente e o coração / É faz pensar que existe uma força maior que nos guia / Que está no ar / Bem no meio da noite ou no claro do dia / Chega a nos angustiar / E o poeta se deixa levar por essa magia / E o verso vem vindo e vem vindo uma melodia”.
“É assim. Vem e a gente começa a compor. Já fiz isso no meio da rua, em guardanapo de restaurante. Não tem explicação”, diz Jorge Camargo, que também abordou a importância da Igreja para a cultura, fazendo um desafio para que a Igreja olhe para as pessoas jovens e lhes dê espaço de expressão.
“Eu sou fruto da Igreja. Em poucos lugares se promove a arte como nas igrejas, mas essa contribuição pode ser ampliada, utilizando-se um espaço físico como esse para além de um templo de culto. Se as igrejas no Brasil abrissem suas portas para os jovens e as artes, o impacto seria ainda muito maior”, incentiva.
Para exemplificar, Jorge Camargo cita uma experiência que teve em Angola quando o país ainda estava em tempos de guerra civil: “Juntei um grupo de músicos e fui visitar um amigo angolano que fiz quando estava estudando inglês na Inglaterra. Chegando lá, a cidade era numa zona estável, sem grande impacto da guerra. Mas não tinha nada: cinema, teatro, shopping, museu, nada. Mas havia uma igreja e todo o espaço de expressão artística da cidade era aquela igreja. Podemos fazer o mesmo no Brasil”.
CARREIRA
Jorge Camargo nasceu na periferia de São Paulo, em 6 de abril de 1963, filho único de um casal com baixa escolaridade e renda. Porém, atribui à cultura de sua mãe o gosto pelas artes. “Ela gostava de artes, quando via um filme sentava comigo e contava tudo. Isso me influenciou muito”, observa.
É cantor, compositor, produtor musical, multi-intrumentista, arranjador e escritor, ex-integrante dos grupos Semente e Vencedores por Cristo. É também intérprete de conferências e tradutor juramentado de inglês, sendo também professor da língua.
Autor de “Teus Altares”, com Guilherme Kerr Neto, lançou em 2009 um livro sobre o álbum “De vento em popa”, como desdobramento de sua dissertação de mestrado em Ciências da Religião, defendida em 2005 na Universidade Presbiteriana Mackenzie. É também doutor em Educação, Arte e História da Cultura pela mesma universidade.
Tem dezessete álbuns editados e 40 anos de experiência musical. Interessa-se pelo estudo sobre a presença, a influência e a importância do sagrado na música popular brasileira e as interfaces entre arte, cultura, filosofia e religião.
Suas músicas foram regravadas por vários intérpretes, como Carlinhos Veiga, Paulo César Graça e Paz Faria, Arautos do Rei, Aline Pignaton, Carol Gualberto, João Alexandre, Paulo César Baruk, Nádia Santoli e Davi Sacer.
Discografia
Solo
- 1987: Salmos
- 1991: Feito o Amanhecer
- 1996: Presença
- 1999: Intimidade
- 2000: O Chamado
- 2008: Somos Um
- 2011: Tudo que É Bonito de Viver
- 2012: Definitivo
- 2012: A Poesia Caminha… Histórias de Viagens Sobre Cidades e Sonhos
- 2013: Canções do Caminho
- 2018: Recital
- 2019: Catedral do Dia
- 2020: Canções da Quarentena vol. 1
- 2020: Gaia
- 2021: Natal, Piano e Voz
Coletâneas
- 2001: 20 Anos de Estrada
- 2002: Surpreendente Graça
EPs
- 2017: Ao Vivo em Orlando
- 2021: Violão e Viola
Comente este post