A família é o último reduto de garantia da identidade e do valor de um ser humano. Quando em nenhum outro lugar uma pessoa se percebe amada, respeitada, valorizada, a família deve ser seu refúgio por nela receber, gratuita e graciosamente, tudo isso.
Fortalecida pela família, uma pessoa enfrenta o mundo! Mas se lhe falta uma família que, minimamente, lhe ofereça tal abraço, ainda que ele venha de muitos e mesmo todos os demais lugares, restará persistente uma ferida que incomoda. Como um tipo de voz que nos lembra sempre o que queremos esquecer!
Sendo assim tão importante, a família de fato precisa ser fortalecida e protegida para que todo ser humano tenha seu último e mais importante refúgio assegurado e preservado.
É nesse sentido que acredito ser a família um projeto divino e, portanto, uma instituição social sagrada. Seu caráter divino e sacro não está em seu lugar como provedora de vida, afeto, autorização para a existência. Não tem a ver com algum tipo de arranjo ou formato, mas com o tipo de afeto que nela predomina. A família é o lugar dos papeis, não dos indivíduos, se é que me entendem.
A família não diz respeito às características que a possam distinguir como tradicional, mono-parental, homoafetiva, heteroafetiva, com filhos naturais ou adotados, com pai e mãe, pai e madrasta, padrasto e mãe ou mesmo pai-padrasto e mãe-madrasta por ter filhos de duas relações distintas.
Quando levantamos a voz para defender a família, especialmente nós evangélicos e porque não nós cristãos num espectro mais amplo, precisamos refletir. Na maioria das vezes estamos nos referindo à família tradicional conforme prescrições de nossa religiosidade. Religiosidade que tantas vezes nos faz classificar pontos de vista e entendimentos aprendidos como expressões fiéis e irretocáveis da “vontade de Deus”.
Quanto à família, falamos dela como “projeto de Deus”. E isso se refere, sobretudo, à sua forma sem que avaliemos seriamente o conteúdo. Simplesmente, afirmamos isso e fechamos os olhos para os fatos. Que fatos? Vejamos.
Poderíamos dizer que todos as pessoas homoafetivas, com raríssimas exceções, foram criadas em famílias heteroafetivas, sem nenhuma influência de famílias homoafetivas. Por serem a esmagadora maioria, são as famílias heteroafetivas e tradicionais as que protagonizam a imensa maioria dos abusos sexuais contra crianças. Abusos praticados, segundo estudos e estatísticas, por amigos da família e, lamentavelmente, por pais, tios e avôs. Infelizmente, há casos de participação pelo consentimento tácito ou posturas veladas ou mesmo explícitas de encobertamento. E isto por mães, tias e avós, às vezes!
São famílias heteroafetivas-tradicionais as que majoritariamente sustentam as perspectivas machistas e misóginas em nossa sociedade. É dentro delas que meninos e meninas são tratados de forma diferente, a partir de valores e liberdades diferentes, o que contribui para enviar à sociedade pessoas incapazes de articularem, para si e para outrem, a igualdade e equidade necessárias para relações sociais mais justas e equânimes.
São nas famílias “tradicionais” onde menos se admite o direito dos filhos de contradizerem seus pais quanto à vocação e à própria identidade. Onde mais frequentemente pais dizem a filhos: “Essa casa é minha e enquanto você viver aqui e comer do meu feijão, as coisas serão do meu jeito!”. E isso é visto como uma atitude virtuosa, embora fira de morte o significado do amor e da aceitação, que deveriam ser fortalecidos, ensinados e preservados.
Quando famílias agem assim, entregam aos que nelas crescem um modelo de parentalidade vocacionado a destruir individualidades e especializado em usar poder e controle, em lugar de capacitado para articular o amor e o respeito em casa e fora dela.
Por idealizarmos a família e rejeitar um olhar firme para os fatos, na defesa do que achamos a única possibilidade, passamos a acusar e demonizar outros arranjos familiares, especialmente as homoafetivas. Como se fossem um perigo ou ameaça à beleza e saúde da família. E em nome do dever de proteger os pequenos, desejamos impedir que sejam adotados por elas. Se não podem ser adotadas por famílias “normais”, que fiquem onde estão!
Além disso, não queremos que nossos filhos convivam em espaços onde essas “verdades” não sejam praticadas. Onde pais homoafetivos sejam respeitados e suass famílias vistas como verdadeiras famílias. Não queremos que sejam corrompidos. Não queremos que pensem que o “errado” está “certo”! E, em se tratando de igrejas, se ousarem acolher, queremos livrar nossos filhos de se acostumarem com o pecado!
E assim, voltados única e cegamente para a forma, para um certo modelo que carimbamos como “único”, tomamos as demais famílias como desvios e espaços perigos. Somente famílias com pai-mãe-filhos-e-filhas (nessa ordem necessariamente) é que constituem o ambiente seguro, saudável e divino. Somente nestas Deus está presente e para elas envia seus anjos da guarda (para os que assim creem).
Talvez pareça a alguns que neste texto eu tenha como objetivo atacar a família tradicional. Mas, ao contrário, meu esforço é justamente o oposto. Desejo muito que ela melhore e se torne realmente um lugar saudável. E, para isso, precisamos combater as mentiras e enfrentar devidamente as presunções preconceituosas. Precisamos deixar de tratar o tema de forma simplista, hipócrita e ignóbil. Precisamos levantar os tapetes que por tanto tempo têm servido para ocultar fatos que ferem e adoecem almas.
Ao me pronunciar assim, o faço como um esforço para que o abraço dos cristãos e de toda a sociedade se alargue e os olhos se abram. Precisamos tanto admitir as feiúras das famílias “tradicionais” quanto abrir nossos corações e mentes para respeitar e acolher as diversas e novas famílias. E assim repensar nossa compreensão sobre saúde e dignidade familiar. Há muitos armários fechados e esqueletos ocultados. Por outro lado, há muitos jardins e flores que nos recusamos a reconhecer.
Eu creio na sacralidade e vocação da família. Mas não creio que isso seja função de sua forma, lapidada pelo tradicionalismo da fé, que pretende se vender como verdade divina. E isso sem a dignidade de um exame sério e uma postura saudável na investigação da verdade bíblica! A ignorância alimenta a violência neste caso, quando a humildade e amor deveriam inspirar o diálogo.
Uma família é sagrada ma medida em que entrega vida e saúde, dignidade e força aos seus entes. A avaliação vocacional de uma família nos pede para julgar sua capacidade de humanizar, de ensinar a retidão e ética próprias do amor e não se está enquadrada no estereótipo da tradicionalidade.
A vocação de uma família, seja de que tipo for, é ser um lugar melhor e o melhor lugar para uma criança crescer e para pessoas viverem. E isso não é determinado por rótulos, mas por atitudes. Uma família pode ser maravilhosamente boa ou terrivelmente ruim. Precisamos ser mais realistas!
Nenhuma família jamais será um céu, mas jamais deveria ser um inferno. Toda família precisa ser um lugar de proteção e suporte. Nela, crianças devem ser amparadas e amadas e jamais violentadas, desrespeitadas ou desprezadas. A família precisa ser, de fato, a instância segura da identidade de seus entes, onde a verdade sobre cada um seja celebrada e não proibida.
Levanto aqui minha voz desejoso de que cristãos e igrejas deixem de falar da família como se ela fosse o que não é. Somente assim poderemos contribuir para que se tornem o que deveriam ser. Precisamos reconhecer os fracassos e tragédias que nossas idealizações criam, alimentam e encobrem. Precisamos reconhecer como preciosas e igualmente sagradas as famílias dos que vivem sozinhos, as mono-parentais por escolha ou assim formadas devido a rompimentos familiares.
Precisamos reconhecer e incentivar o bom papel dos padrastos e madrastas. Reconhecer a beleza e vocação das famílias homoafetivas. Elas não formam submundos e muito menos lugares insalubres para uma criança desenvolver-se e crescer! Todas as famílias são lugares potencialmente bons e ruins. E não devemos presumir negativamente a respeito de qualquer delas apenas por serem de natureza diversa à que convencionamos chamar de tradicional.
O esforço da sociedade e das igrejas deve ser o de apoiar as famílias para que sejam lugares seguros, saudáveis e felizes. Para isso é fundamental que tenham a coragem de com elas conviver, conhecendo suas realidades e histórias.
As leis já estão reconhecendo e protegendo as novas famílias. Mas é fato que nossa sociedade ainda lida muito mal com elas. E a igreja, inegavelmente, é uma das vozes mais influentes na manutenção de preconceitos e rejeições. Uma atitude duplamente nociva, pois preserva as maldades encobertas pelo tradicionalismo e nega a beleza e valor que apenas consegue demonizar.
É fato que tratar e expor este tema como o faço pode desagradar bastante. Sendo evangélico e pastor, escandaliza até! Mas, é preciso começarmos a tratar o tema com a luz que ele merece. De alguma forma a igreja, que tão poderosamente forja consciências, deve ser mais cuidadosa e avaliar seus caminhos e pressupostos sobre a família. E não deveria se esconder por trás do que afirma ser a verdade bíblica.
Que o verdadeiro, inequívoco e insuperável, princípio do Evangelho – o amor devido ao próximo em resposta ao amor recebido de Deus – seja o fiel da balança. Não o fato de segurarmos orgulhosamente uma Bíblia nas mãos e repetirmos versos particularmente selecionados que nos colocam “do lado certo”. Deus abençoe as famílias. A minha, a sua e todas, absolutamente todas as famílias.
*Escrevo este texto com a alma mexida pela memória do crime contra a criança Araceli Cabrera Crespo, praticado por dois rapazes de classe média e de famílias tradicionais de nossa capital. Que nunca responderam por seus atos. Em memória, o dia 18 de maio veio a tornar-se o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.
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