Weber Andrade
“Eu não queria passar por outra, mas, o dinheiro que chegou até agora, mudou minha vida pra melhor. Deu pra reformar a minha casa, comprar um carrinho para trabalhar e ainda tem mais pra receber.” O depoimento, de um morador do bairro Floresta, à margem do rio Doce, em Governador Valadares, aponta um ‘benefício’ que o crime ambiental da Vale/Samarco trouxe para parte da população ribeirinha.
“Aqui não tem mais peixe, só tilápia e bagre africano, mas pouca gente tem coragem de comer. Eu não vivia da pesca, mas pescava sempre e, graças ao rompimento da barragem de Mariana, melhorei de vida, até minha mulher, que tem carteira de pescadora, recebeu uma bolada”, conta outro morador do bairro.
Em um barzinho onde parte dos moradores se reúnem diariamente após o expediente, o assunto ‘barragem de Mariana’ está sempre em voga e os relatos apontam que muitos receberam entre R$ 100 mil e R$ 150 mil da Fundação Renova e esperam mais. Alguns dizem que já receberam até o ‘dinheiro da Inglaterra’, falando sobre caso da BHP Billington, sócia da Vale/Samarco que está sendo processada na Inglaterra.
De acordo com outro morador do bairro Floresta, ele recebeu mais de R$ 8 mil de compensação só por causa dos gastos com água mineral, embora a distribuição de água mineral gratuita tenha ocorrido no município durante o período mais crítico da passagem da lama.

Oito anos da tragédia
Relatos como estes marcam os oito anos do crime ambiental da Samarco/Vale que destruiu a antiga comunidade de Bento Rodrigues, em Mariana, na Região Central de Minas Gerais.
A barragem de Fundão rompeu em 5 de novembro de 2015, em Mariana, e causou o maior desastre ambiental da história do país.
No velho Bento, pouco sobrou de uma história de mais de três séculos: da maioria das casas, restam apenas destroços. O único barulho é o dos pássaros, e as ruínas da escola municipal foram tomadas por mato. A Capela de Nossa Senhora das Mercês é uma das poucas construções de pé.
“É triste ver tudo acabado assim. Aqui era bom e sossegado de morar, todo mundo sente falta, era aqui que a gente queria estar hoje”, disse a dona de casa Ana Paula Salgado, de 30 anos, ao visitar o antigo vilarejo.
Cerca de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração destruíram comunidades e modos de sobrevivência, contaminaram o Rio Doce e afluentes e chegaram ao Oceano Atlântico, no Espírito Santo. Ao todo, 49 municípios foram atingidos, direta ou indiretamente, e 19 pessoas morreram.
Neste ano, as famílias que tiveram que sair de casa em 2015 começaram a receber as chaves dos novos imóveis, mas ainda falta muito. No novo Bento Rodrigues, dos 248 previstos, 168 estão com obras finalizadas, segundo a Fundação Renova, entidade criada para a reparação dos danos.
Em Paracatu de Baixo, de um total de 93, 66 estão concluídos. Ao todo, nos dois reassentamentos, 72 imóveis foram entregues aos moradores.
Já em Gesteira, distrito de Barra Longa, na Região Central, que também foi atingido pelos rejeitos, o modelo de reassentamento é diferente: um acordo prevê a transferência de R$ 126 milhões da Renova para a prefeitura, que será responsável pelas obras de infraestrutura e urbanização e pela construção de 36 casas.
No novo Bento, as ruas largas com casas amplas e modernas pouco lembram o antigo distrito, que fica a cerca de 10 km de distância. A estrutura se parece com a de um condomínio fechado – a entrada, inclusive, é controlada pela Fundação Renova.
Por lá, a saudade da vida na antiga comunidade está sempre presente, mas os moradores também querem dar lugar à esperança do recomeço.

Nenhuma condenação
Passados oito anos, ninguém foi responsabilizado criminalmente pela tragédia. Os réus – que já foram 26 e, agora, são 11 – vão começar a ser interrogados nesta segunda-feira, 6. Apesar das 19 mortes causadas pelo rompimento da barragem, eles não respondem mais por homicídio.
Em outubro de 2016, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou 22 pessoas e quatro empresas (Samarco, Vale, BHP e VogBR, consultoria que atestou a estabilidade da barragem).
Entre as pessoas físicas, 21 foram denunciadas por homicídio qualificado, inundação, desabamento, lesões corporais graves e crimes ambientais, e uma, por apresentação de laudo ambiental falso.
Em novembro do mesmo ano, a denúncia foi recebida pela Justiça Federal. No entanto, em 2019, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) retirou a acusação de homicídio e lesão corporal de todos os réus. As 19 mortes foram consideradas pela Justiça consequências da inundação causada pelo rompimento.
Além disso, ao longo dos anos, a Justiça trancou a ação penal com relação a vários réus, ou seja, muitas pessoas que tinham sido denunciadas não respondem mais pela tragédia.
Atualmente, o processo tem 11 réus – as quatro empresas e as seguintes pessoas físicas:
Ricardo Vescovi de Aragão (diretor-presidente da Samarco à época do desastre);
Kleber Luiz de Mendonça Terra (diretor de operações e infraestrutura da Samarco);
Germano Silva Lopes (gerente operacional da Samarco);
Wagner Milagres Alves (gerente operacional da Samarco);
Daviely Rodrigues Silva (gerente operacional da Samarco);
Paulo Roberto Bandeira (representante da Vale na Governança da Samarco)
Samuel Paes Loures (engenheiro da VogBR).
Os cinco primeiros respondem por inundação qualificada, desabamento e 10 crimes ambientais. Paulo Roberto Bandeira, por três crimes ambientais, e Samuel Paes Loures, por um. Devido à demora na tramitação do processo, dois crimes ambientais prescreveram.
“Eu tenho muita expectativa de que a condenação criminal das empresas e pessoas físicas vá ocorrer no começo de 2024. […] O MPF tem absoluta convicção de que a produção de provas foi suficiente para a condenação. Apesar de não concordarmos (com a retirada da acusação de homicídio), nós respeitamos a decisão e estamos fazendo o melhor para conseguir a máxima condensação possível para esses crimes”, afirmou o procurador da República Carlos Bruno Ferreira da Silva.
Segundo as investigações do MPF, os denunciados sabiam dos riscos de rompimento da barragem e optaram por manter a estrutura em funcionamento, sem se preocupar com a segurança das comunidades próximas e dos próprios funcionários.
‘Reparação insuficiente’
Além do processo criminal, tramitam na Justiça ações civis públicas que buscam a reparação dos danos ambientais e socioeconômicos causados pelo rompimento da barragem.
Inicialmente, duas ações principais requerendo a condenação das empresas foram ajuizadas. Ao longo dos últimos anos, a Justiça desmembrou o processo em 12, por temas como saúde e moradia, instaurando uma ação para cada um deles. Nenhuma foi julgada até agora.
No mês passado, as instituições de Justiça pediram o julgamento antecipado de parte das ações, como as que tratam de indenizações por dano moral coletivo. Elas pedem uma condenação de aproximadamente R$ 100 bilhões contra Samarco, Vale e BHP.
Para o procurador da República Carlos Bruno Ferreira da Silva, as ações de reparação executadas pela Fundação Renova são insuficientes.
“Infelizmente, depois de oito anos, a sensação para todos que atuam no Rio Doce é de completa ausência de reparação aos atingidos e ao meio ambiente. […] O cenário no Rio Doce é desolador”, afirmou.
Segundo a Renova, até agosto deste ano, foram desembolsados R$ 32,6 bilhões em ações de reparação e compensação. Desse valor, R$ 13,1 bilhões foram destinados ao pagamento de indenizações e R$ 2,5 bilhões, a auxílios financeiros emergenciais, para um total de 431,2 mil pessoas.
No entanto, o MPF considera que foram atingidos, de forma direta ou indireta, 49 municípios, com uma população total de 2,4 milhões de pessoas.
“Evidentemente se espera indenização mais ampla para as pessoas atingidas. […] A petição visa garantir melhor indenização para as pessoas e para a coletividade como um todo”, disse o procurador.
Na Justiça inglesa, corre outro processo em busca de reparação. Cerca de 700 mil atingidos, incluindo municípios, comunidades indígenas, igrejas e empresas, reivindicam R$ 230 bilhões em indenizações. O julgamento está previsto para começar em outubro de 2024, mas o escritório de advocacia que representa as vítimas espera fazer um acordo com Vale e BHP antes disso.

Repactuação prevista para dezembro
Há cerca de três anos, os governos de Minas Gerais e Espírito Santo, a União, as instituições de Justiça e as mineradoras discutem a repactuação do acordo de reparação dos danos provocados pela tragédia em Mariana.
No ano passado, as empresas ofereceram R$ 112 bilhões, mas o governo de MG não concordou com a forma de pagamento. As negociações continuam, e a expectativa agora é que o novo acordo seja assinado até 5 de dezembro.
“O acordo foi melhorado, nos parece que é um acordo pronto, basta haver boa vontade de todos na mesa, em especial das empresas. […] A grande vantagem do acordo é conseguir reparação definitiva e imediata para a sociedade”, afirmou o procurador da República Carlos Bruno Ferreira da Silva.
Segundo Joceli Andrioli, membro da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), falta participação dos atingidos na definição dos termos.
“Até agora não tivemos direito à participação no processo de repactuação. […] O Brasil precisa dar um resultado concreto de como reparar crimes socioambientais de grande complexidade. Aconteceu Mariana, aconteceu Brumadinho. Hoje o sistema judiciário não dá conta, e o estado brasileiro está de costas para isso”, disse.
Em nota, o governo federal afirmou que “ainda não há consenso entre as partes quanto às medidas da repactuação e a destinação que deve ser dada aos recursos que serão recebidos a título compensatório”. A União declarou, ainda, que “discorda de qualquer perspectiva de pactuação que possibilite a aplicação dos recursos que forem recebidos fora da Bacia do Rio Doce”.
O governo de Minas disse que tem compromisso com “a justa reparação aos atingidos pelo rompimento da barragem”.
O Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6), que está coordenando as discussões, afirmou que a expectativa é fechar o acordo até o fim de 2023.
(Da Redação com g1 e Agência Brasil)
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