O mineiro Juscelino Kubtscheck enfrentou crises muito mais difíceis do que Lula, quando se elegeu presidente da República e teve sua eleição questionada porque não atingiu maioria absoluta dos votos – naquela época, vencia-se por maioria simples, pois não havia segundo turno entre os mais bem votados para que a vitória fosse por mais de 50% dos votos.
Em outubro de 1955, JK obteve 36% dos votos, Juarez Távora (general) 30%, Ademar de Barros 26% e Plínio Salgado, representante do integralismo, o rosto do fascismo no Brasil, teve 8%. A contestação à eleição de Juscelino foi uma espécie de alegação de fraude eleitoral nas eleições de 2022 – só faltava pedir voto impresso e auditável, como gostavam os coronéis dos tempos das eleições com seus “votos de cabresto”.
A UDN, partido conservador que fez forte oposição ao trabalhismo de Getúlio Vargas – cujos integrantes viriam a compor os principais quadros da Arena no regime militar e, depois, partidos do mesmo segmento, como PDS e PFL, e hoje DEM – tentou melar a eleição antes de ela acontecer.
Frustrada a intenção da UDN, depois que Juscelino ganhou entraram em cena os militares. Ou melhor, civis que incitavam os militares. Naqueles tempos, Carlos Lacerda era o principal defensor da intervenção militar – sim, exatamente igual aos dias atuais. O médico JK era acusado de quê? De ser comunista.

Quando entrou novembro e JK cuidava de formar sua equipe de governo, o coronel Jurandir Mamede era o maior defensor de um golpe militar, mas encontrou um corajoso general pela frente: Henrique Teixeira Lott, um legalista ferrenho, que não queria nem os comunistas e nem a extrema direita com tantos poderes e promoveu um contragolpe no dia 11 de novembro de 1955.
Lott mobilizou tropas militares no Rio de Janeiro, então capital da República, tomou o controle de unidades militares, invadiu prédios governamentais, ocupou estações de rádio e jornais para controlar a comunicação, depôs o presidente interino Carlos Luz e devolveu o poder ao Senado, com Nereu Ramos comandando o processo de posse, em 31 de janeiro de1956, do presidente legitimamente eleito pelas regras da época.
Depois da posse, Juscelino teve que enfrentar duas tentativas de golpes militares. A primeira logo no início de seu governo, no dia 10 de fevereiro de 1956 (Lula sofreu uma tentativa de golpe oito dias depois da posse), quando dois oficiais tomaram um caça AT-11, no Rio de Janeiro, e voaram para Santarém, no Pará, onde se juntaram a outros revoltosos, tomaram a cidade e alguns povoados ao redor.
O governo teve dificuldade de controlar o movimento, porque a Aeronáutica se recusou em ajudar no processo. Dezenove dias depois, em 29 de fevereiro, finalmente tropas legalistas sufocaram a tentativa de golpe, conhecida como Revolta de Jacareacanga, com a prisão de um de seus líderes, o major aviador Haroldo Veloso.
JK contornou a situação com diplomacia, anistiando os revoltosos e dando um generoso aumento de salário às tropas. Mal sabia ele que pouco mais de três anos depois teria problemas com os mesmos elementos, em outra revolta batizada de Aragarças, em 2 de dezembro de 1959.
A manobra envolveu alguns civis, mas basicamente oficiais da Força Aérea Brasileira (FAB), chefiados pelo major aviador Haroldo Coimbra Veloso e pelo tenente-coronel João Paulo Moreira Burnier. Eles se rebelaram depois que Jânio Quadros se recusou a ser candidato da oposição a Presidente no pleito do ano seguinte.
Os revoltosos sequestraram três aeronaves Douglas C-47 da FAB e uma civil Beechcraft D-18, que decolaram sem permissão da Base Aérea do Galeão e foram desviados para Aragarças, importante ponto estratégico do País, do ponto de vista geográfico.
O primeiro Douglas C-47 tinha o major Haroldo Veloso como passageiro e, em voo, ele assumiu seu comando: o segundo foi comandado por Burnier. A aeronave civil foi sequestrada em Belo Horizonte pelo major Washington Mascarenhas. A intenção era bombardear o Palácio do Catete, sede do Executivo, e das Laranjeiras, do Legislativo, e tomar as bases aéreas de Santarém e Jacareacanga, no Pará.
Eles haviam sequestrado também um avião da Panair, que saiu do Rio para Belém, com oito tripulantes e 38 passageiros a bordo, tomado pelo major-aviador Eber Teixeira Pinto e o civil Charles Herba. Sem apoio, a revolta dos golpistas (que estariam entre os de 1964) durou apenas 36 horas, quando eles decolaram e se exilaram na Bolívia, Paraguai e Argentina, voltando ao País somente quando Jânio Quadros foi eleito em 1960 e assumiu o poder em 1961.
Apesar dos sobressaltos, Juscelino Kubitscheck concluiu seu mandato e passou a faixa para Jânio, que renunciou oito meses depois acreditando que voltaria nos braços dos militares – ledo engano, os militares golpistas da era da guerra fria tinham outros planos. Tentaram impedir a posse do vice João Goulart, o que foi contemporizado pela “solução parlamentarismo” e, finalmente, tomaram o poder por 21 anos a partir de março-abril de 1964.
A CRISE DE LULA
Oito dias depois de assumir a Presidência para seu terceiro mandato, Lula sofreu uma tentativa de golpe promovida por uma horda que tomou as sedes dos três poderes – os Palácios do Planalto, da Justiça (STF) e o Congresso Nacional – pedindo uma intervenção militar. No meio dos civis em fúrias, militares, da reserva e, segundo o que o Ministério da Justiça apurou, também alguns da ativa.
Nesta sexta-feira (20), depois de ter declarado, no dia seguinte à tentativa de golpe, ter perdido a confiança nos militares, Lula reuniu os comandantes das três forças – Exército, Marinha e Aeronáutica -, juntamente com o ministro da Defesa, para fazer um aceno em busca de estabilidade.
Os três principais jornais do País – Folha de São Paulo, O Globo e O Estado de São Paulo – registraram o encontro sob a mesma abordagem: depois de participar de reunião do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com comandantes das Forças Armadas, o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, afirmou que os militares estão cientes que o governo poderá adotar punição a integrantes das tropas que eventualmente tenham a participação comprovada nos atos golpistas. O ministro, contudo, disse que o assunto não foi tratado no encontro.
“Os militares estão cientes e concordam que vamos tomar as providências. Evidentemente, no calor da emoção, precisamos ter cuidado para que os julgamentos e acusações sejam justas para que as penas sejam justas. Mas tudo será providenciado no seu tempo. Os ataques de 8 de janeiro não foram discutidos. Isso está com a Justiça. Estamos atrás e aguardando as comprovações para que as providências sejam, e serão, tomadas”, afirmou Múcio.
Após o mal-estar criado por Lula expor sua desconfiança com miliares, a mensagem que o presidente transmitiu na reunião, segundo Múcio, foi de “fé no trabalho deles”.
“Entendo que não houve envolvimento direto das Forças Armadas. Agora, se algum elemento, individualmente, teve a sua participação, ele vai responder como cidadão.
Segundo Múcio, o assunto do encontro foi investimentos na área de Defesa. A reunião teve a presença do vice-presidente Geraldo Alckmin, do presidente da Fiesp, Josué Gomes e do economista Luciano Coutinho, ex-presidente Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Na primeira reunião de Lula com os comandantes, em 16 de dezembro, o presidente solicitou um relatório com demandas e necessidades de investimento em cada força. Na última segunda-feira, Lula cobrou Múcio sobre o andamento dos relatórios.
A Folha registrou que o clima na reunião, segundo pessoas que conversaram com os presentes, foi bastante ameno. Lula lamentou os eventos do 8 de janeiro, mas não buscou responsabilizar as Forças Armadas como instituição.
Ressalva, ainda, que é cedo para dizer que a crise entre Lula e os militares acabou, dada a animosidade de lado a lado. Oficiais-generais se queixam do que consideram espírito de revanche do presidente, enquanto petistas reclamam do comportamento da cúpula militar durante a crise do dia 8.
Mas o caminho de tentar entregar algo aos militares não é novo e já se mostrou eficaz. Nos seus dois primeiros mandatos (2003-10), Lula venceu desconfianças abrindo espaço para demandas práticas dos fardados, que resultaram na organização de um arcabouço legal para o regramento das indústrias de defesa.
Além disso, insinuou pela primeira vez depois da redemocratização algum interesse institucional no poder armado, com a criação da Política Nacional de Defesa, para fixar as metas do setor e avaliar seus meios, e a Estratégia Nacional de Defesa, que busca estabelecer como executar os objetivos.
Como resultado, houve programas grandes que estão em curso até hoje, como a construção de submarinos e helicópteros decorrente do acordo militar com a França, em 2009.
A Folha de São Paulo já havia mostrado que um relatório em posse do Ministério da Justiça identificou ao menos oito militares da ativa lotados na Presidência da República durante o governo de Jair Bolsonaro, que compareceram no ano passado a atos no acampamento golpista em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília.
Além disso, o documento mostra que alguns participaram de grupo de WhatsApp em que foram trocadas e compartilhadas mensagens antidemocráticas e ameaças a Lula.
O relatório foi produzido durante a transição de governo com base em conversas obtidas de grupos de WhatsApp. Os militares estavam alocados em especial no GSI (Gabinete de Segurança Institucional) da Presidência durante a gestão do general Augusto Heleno, um dos principais aliados de Bolsonaro.
Apesar de refutar um envolvimento direto das Forças Armadas no ato golpista, Múcio admitiu que a reunião foi antecipada para reduzir a tensão da relação entre Lula e as Forças Armadas.
“Não tenha a menor dúvida que foi por isso nós procuramos antecipar essa reunião”, disse.
O ambiente político internacional favorecia aventuras autoritárias, mas nos tempos atuais, como disse um sargento ao abordar acampados em frente uma das muitas unidades militares no Brasil ao longo dos 60 dias que separaram a eleição de Lula no segundo turno e o 8 de janeiro de 2023, qualquer coisa diferente da posse do eleito, de forma constitucional, seria golpe e atiraria o País no isolamento. Muito mais do que já ocorreu durante os quatro anos de Jair Bolsonaro. (Da Redação com informações de O Globo, Folha de São Paulo e O Estadão)
Foto da capa: Ricardo Stuckert/Presidência da República
Comente este post