*Da Redação
O recente episódio divulgado pela Polícia do jovem João Lucas, 21 anos, assassinado no último domingo (6l, a mando do gerente do tráfico de drogas do bairro São Diogo 2, na Serra, é apenas uma pequena mostra do alto grau de vulnerabilidade a que está exposta a infância, adolescência e a juventude na atualidade, especialmente na periferia.
O episódio, embora as autoridades não tenham mencionado diretamente, pode ter sido mais um caso de disputa de gangues. O editor da TNL notou, e destacou, na foto divulgada pela Secretaria de Segurança, a vítima fazendo o sinal de identificação de uma organização criminosa rival da que controla o movimento do tráfico no local do crime.
Pode ter sido apenas um exibicionismo ingênuo da vítima, mas no mundo do crime não há ingenuidade, sim, crueldade. Por coincidência, o local onde o rapaz morava, em Vila Velha, é área de atuação da organização que ele sinalizou com os três dedos. Sem querer culpabilizar a vítima, até porque uma coisa não justifica a outra, mas são os fatos. Em outros lugares do Estado, já se registraram crimes cometidos por traficantes pelo mesmo motivo.
A Polícia, justificadamente, não quis fazer publicidade dos grupos criminosos e deu a informação sem dar, ao mencionar que os traficantes de São Diogo mataram João Lucas por suposição de que ele poderia estar traficando em sua área ou mesmo fazendo observações para organização rival, como mencionou o chefe da Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), da Serra, delegado Rodrigo Sandi Mori.
Outros aspectos chamam a atenção no caso de São Diogo: todos os envolvidos têm até 21 anos de idade – a vítima e dois envolvidos de maior idade, além de dois adolescentes de 17 anos. Um dos maiores, de 21 anos, identificado pela Polícia como gerente do tráfico, foi para a terceira entrada no presídio. Em três anos de vida de responsabilidade civil, a maior parte do tempo passou na cadeia. Agora, pode pegar penas que ultrapassam os 12 anos. Já é um veterano no crime.
Do alto de sua experiência de 32 anos como policial, o cheffe da Polícia Civil, delegado José Darcy Arruda, demonstrou constrangimento ao falar do caso de João Lucas: “Tenho 32 anos de carreira e casos como esse ainda mexem com a gente. Um menino com toda uma vida pela frente, sendo morto por traficantes na frente da mãe. Fico imaginando o desespero dessa mãe. Mas a Polícia Civil faz sua função e agiu muito rápido ao intervir nessa processo. Todos estão presos e espero que eles reflitam sobre o que fizeram e nunca mais façam isso”.
Arruda reforça que João Lucas não tinha “nenhum envolvimento com nada e só pelo fato de ter ido visitar a mãe em São Diogo despertou a atenção do tráfico, foram lá e mataram ele na frente na frente da mãe, com uma bebê no colo. Na hora de ir embora, um dos adolescentes ainda resolve matar a mãe, mas erra o tiro e acerta no braço”.
Segundo Arruda, “essa imaturidade, intempestividade, isso é terrível. São adolescentes sem limites e sem medo de nada, inconsequentes, com a certeza da impunidade, mas estão presos. O Estado agiu rápido. O que nós temos que fazer é isso, é nossa missão, temos que prender. Agora, o Judiciário e o MP têm que fazer a parte deles. Nossa parte é tirar esse tecido contaminado do meio da sociedade. Eles são adolescentes, a gente ainda espera que possam se recuperar e voltar a conviver em sociedade. Se não conseguir, vão ter que viver as consequências dos atos deles. Isso tudo chocou a gente”.

MORTES EM CONFRONTO
No mesmo dia em que a Polícia divulgava o caso, nesta quinta-feira (10), em Andorinhas, em Vitória, um jovem de 21 anos correu da abordagem policial, foi cercado e teria sacado uma arma e apontado para os agentes públicos. Os PMs atiraram e o rapaz morreu ao dar entrada no hospital.
Não é caso isolado. São episódios que têm se repetido com muita frequência. Senão, vejamos os mais recentes.
Um adolescente de 15 anos morreu após aer baleado por policiais militares do Batalhão de Missões Especiais (BME), em patrulhamento no Morro da Boa Vista, em Vila Velha, na noite de 2 de outubro.
Na manhã do dia 3. em Marechal Floriano, a 50 quilômetros de Vitória, nas montanhas capixabas, dois adolescentes, de 15 e 17 anos, morreram baleados numa abordagem da Polícia Militar.
Uma semana antes, numa operação da Polícia Militar, no bairro Jesus de Nazareth, em Vitória, dois jovens acabaram morrendo após serem baleados pelos policiais.
Há menos de um mês, dois jovens, um deles um adolescente de 16 anos, também morreram num desses confrontos com a Polícia no Morro do Macaco, em Vitória, região de Alto Tabuazeiro, onde pelo menos 10 pessoas, mais da metade com menos de 30 anos, morreram nesses incidentes com a Polícia nos últimos 13 meses.
Só no mês de março deste ano, três jovens morreram de uma só vez no chamado Morro do Macaco, dois deles adolescentes com 16 e 17 anos. Foi num confronto de madrugada com a Polícia.
Este é apenas um rápido retrato dos últimos dias da guerra das forças de segurança para manter “sob controle do Estado” (para usar a expressão preferida pelo comandante da Polícia Militar, coronel Douglas Caus) contra cidadãos atuando à margem da lei no Espírito Santo, no caso, 100% deles atuando no movimento do tráfico de drogas.
Há um velho ditado que diz “macaco velho não mete a mão em cumbuca”. Como as estruturas sociais mudaram muito, e as famílias são diferentes de algumas décadas, quando os mais novos ouviam histórias dos mais velhos, geralmente carregadas de filosofia de vida, essa nova geração parece que não ouviu contar a fábula do macaquinho neófito pego com a mão presa na combuca.

OS NÚMEROS DO ANUÁRIO
O Anuário da Segurança Pública do Espírito Santo, referente ao ano de 2023, indica que a letalidade policial compreende todas as mortes provocadas por agentes do Estado, seja em serviço ou fora de serviço, engloba mortes decorrentes de confrontos, homicídios culposos, homicídios dolosos, feminicídios e mortes em legítima defesa. Em 2023, foram registradas 74 mortes provocadas por agentes do Estado no Espírito Santo.
Desse total, 59 foram mortes em confronto, o mais notório deles o episódio do Morro do Macaco, onde, em agosto de 2023, cinco homens envolvidos com o tráfico de drogas, morreram em confronto com agentes do Estado.
O documento oficial produzido pela Secretaria de Estado da Segurança Pública (SESP), salienta, entretanto, que que a taxa de mortes resultantes de confrontos policiais no Espírito Santo em 2023 foi de 1,51 por 100 mil habitantes e que essa taxa coloca o Estado dentre os com menor letalidade policial no País, onde, segundo dados do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp), a taxa média foi de 3,1 em 2023.
Outro destaque feito pelo Anuário é que, no período de 2018 a 2023, as ocorrências de confronto aumentaram quase 200% e que, apesar desse aumento no número de incidentes, a letalidade policial não acompanhou esse crescimento, “mantendo-se em patamares relativamente baixos”.
Em 2023, o Espírito Santo registrou um total de 489 ocorrências de confronto envolvendo agentes do Estado. Este número representa um aumento significativo em comparação a 2018, quando foram registradas 165 ocorrências similares.
Apesar da alta exposição policial a situações de risco, o Estado do Espírito Santo mantém índices baixos de vitimização policial. Em 2023, apenas dois agentes de segurança morreram, sendo que uma das vítimas pertencia ao Exército Brasileiro e a outra era um policial militar da reserva. Nenhum agente estadual da ativa morreu em 2023, apesar do elevado número de confrontos, em média, mais de 40 por mês.
Mas não é só jovem que morre em confronto com a Polícia do Espírito Santo. Em outubro de 2022, um bando do “novo cangaço”, em ação em outros Estados, fechou ruas de Santa Leopoldina e assaltou agências bancárias durante a noite. Foram cercados, reagiram e cinco morreram no confronto com a Polícia capixaba.
ORIGEM DO PROVÉRBIO
A origem da expressão “macaco velho não mete a mão em cumbuca” foi lembrada pelo jornalista Augusto Nunes, em sua coluna na Veja Online, quando reportou-se à lambança de Sérgio Cabral Filho e seus amigos num hotel de Paris, “quando celebravam a cachorrada que fizeram com a riqueza do Rio de Janeiro”.
Segundo Nunes, o costume de macacos meterem a mão na cumbuca foi registrado pela primeira vez no Diálogo das Grandezas do Brasil, livro atribuído durante muito tempo a Bento Teixeira. Mas era prosopopeia.
Capistrano de Abreu descobriu o verdadeiro autor: Ambrósio Fernandes Brandão, judeu convertido à força pela Inquisição e pelo Santo Ofício. Tornado cristão-novo, ele se estabeleceu como senhor de engenho na Paraíba, ainda no Século XIV, registra o jornalista.
Todos os autores registram o berço do provérbio mais ou menos assim:
o macaco velho, talvez por ter aprendido antigas lições, não mete a mão em cumbuca. O macaco jovem, ainda inexperiente, mete a mão e, não querendo soltar o milho que pegou na cumbuca, fica com a mão presa lá dentro. Se soltasse o que pegou, ficaria com a mão livre, mas não faz isso.
Trazendo para o tema dessa reportagem, “malandros velhos”, traficantes mais experientes colocam o “poder” nas mãos de jovens impetuosos e presunçosos, na forma de um pistola 9mm por exemplo, e os convencem, facilmente, de que podem enfrentar uma Polícia armada para a guerra.
PARA ALÉM DO CONFRONTO
A entrada de cabeça no tráfico é o ponto máximo da degeneração dos jovens da periferia, normalmente pretos e órfãos de pais – ou filhos de mães que estão presas por assumirem as broncas no lugar dos maridos para que eles, os pais de seus filhos, continuem “trabalhando” e sustentando a casa.
Quando os pais são presos, as mães têm que sair para trabalhar e os filhos ficam soltos, às vezes sob os cuidados de algum parente, mas presas fáceis para as ofertas de “trabalho” que começa com um simples empinar de pipa para avisar quando a Polícia chega.
Depois, viram pequenos aviões subindo e descendo morros, ou entrando e saindo de vielas nas baixadas, para entregar droga para compradores que vêm de bairros de classe média – a mesma que quando vê, alguns anos depois, esses meninos com cara de bicho e matando gente como se mata uma barata, tem uma reação muito comum: “Tem que matar essas pragas”.
Quando já conseguem segurar uma arma, esses meninos são empodeirados e promovidos à condição de “soldados do tráfico”. E acreditam que podem enfrentar os bem armados e treinados soldados enviados pelo Estado (Polícia) em seu encalço. Os grandes escapam, os neófitos, em geral, vão para o cemitério.
Na sociedade escravocrata brasileira (Jorge Caldeira em “História da Riqueza no Brasil“), a senzala é representada pela periferia das grandes cidades. É ali que nosso jovens são condenados à alienação e à marginalização, em geral. Quem se salva tenta rasgatar outros, mas o trabalho é inglório. O batalhão dos deserdados sociais só faz crescer.
O Estado, quando demonstra boa vontade, ainda assim é tímido para garantir aos da periferia o mesmo acesso aos direitos da cidadania que aos da “casa-grande” (para os não iniciados, estamos usando uma metáfora tomando emprestados conceitos do livro “Casa-grande & Senzala“, do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, publicado em 1933 após extensa pesquisa e até hoje respeitado com um dos melhores retratos da formação da sociedade brasileira).
Depois que esses jovens são cooptados para o mundo do crime, parece haver muito pouco a fazer por eles. O sociólogo capixaba Erly dos Anjos, que passou sua vida estudando as raízes da violência, interpreta a realidade urbana como uma projeção da cultura coronelista brasileira, com seus jagunços e pistoleiros. Portanto, a matriz de nossa sociedade seria violenta. E está refletida como uma fratura social exposta nas periferias.
*NOTA DA REDAÇÃO: Esta reportagem traz dados oficiais e outros coletados do noticiário. Os dados oficiais das mortes em confrontos não são de fácil acompanhamento diário e somente são publicizados quando da publicação do anuário da Segurança Público. Não temos o objetivo de condenar ou abonar a conduta de quem quer que seja, apenas de provocar uma reflexão da sociedade para os (des)caminhos que toma.
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