*José Caldas da Costa
A vulnerabilidade social e suas tragédias parecem ser transmitidas de geração a geração e se perpetuar, se alguém não quebrar o círculo vicioso – seja uma intervenção do Estado regulador dos interesses de seus cidadãos e sócios, seja a sociedade por meio de suas ações coletivas solidárias, seja pela autodeterminação do indivíduo, o que parece ser o preferido nas sociedades dominadas pelo liberalismo sem considerar que, muitas vezes, o indivíduo foi tão enfraquecido que chegou a esquecer-se de que possui em si o poder da mudança.
Essa tragédia se reproduz na pequena cidade de Sooretama, antigo distrito de Córrego D´Água, que pertencia a Linhares e foi emancipado em 1994, portanto, prestes a comemorar 30 anos no dia 31 de março do próximo ano. Com 587 quilômetros quadrados, destaca-se por suas terras próprias para agricultura, ali produzindo café, mamão, pimenta-do-reino, cítricos, coco e com a maior reserva florestal do Espírito Santo.
Nesses quase 30 anos, Sooretama experimentou um fenômeno comum a cidades periféricas: aumento da população sem o necessário acompanhamento de desenvolvimento humano. Pelo contrário.
Atravessado pela BR 101, que liga o Sul ao Nordeste do País, o município é parte integrante de um território que se interliga por várias estradas secundárias, num labirinto bem conhecido por quem é da região e que passa a ser dominado por aqueles que vivem à margem da lei e das regras da urbanidade social.
O centro da cidade é conhecido como aquela parte mais próxima à BR, por onde chegam e saem seus visitantes e os que para ela vêm trabalhar na colheita do café, de diversas regiões mais pobres do Nordeste do País e do Leste de Minas. A cidade é plana e se estende por ruas nos sentidos longitudinais e latitudinais de maneira, neste aspecto, mais ou menos organizada. A organização, porém, para por aí.
“É uma cidade sem regras, sem respeito”, comenta um dos cidadãos mais antigos, que trabalha e cria ali a sua família. Falta de regras e de respeito que se expandem de forma exponencial quanto mais distante se está do eixo da BR 101, num raio que, entretanto, não chega a 2km rumo ao ocidente e nem 1km rumo ao oriente – margens esquerda e direita da BR (esta parte vem tendo uma ocupação mais recente). A mancha urbana da sede do município não passa de 6 quilômetros quadrados.
Nesse emaranhado de mazelas, que passam por seguidas gestões administrativas marcadas por atos pouco republicanos (já teve prefeito afastado, outro até preso por corrupção… ), as maiores vítimas são os que moram nas chamadas condições de vulnerabilidade social. O mais recente e rumoroso caso o do sequestro e, agora confirmada, morte de três adolescentes: Kauã, Wellington e Carlos Henrique.
Três amigos entre 14 e 15 anos cujo pecado foi terem nascido e crescido cercados pela violência e serem crianças normais, sem envolvimento com o crime, mas curiosas, como tantas outras crianças em qualquer lugar do planeta. Só não contavam que os adultos, em quem poderiam ver proteção e segurança, no fundo também têm morando dentro de si uma besta indomável, movida pela ambição e a estupidez.
Tudo isso reunido com as más condições de moradia em bairros conhecidos como Salvador, Sayonara e Parque São Jorge. Na identificação popular, Areal, Baixada e Fazendinha. Exatamente a guerra do tráfico entre criminosos do Areal e da Baixada foi o que vitimou três adolescentes inocentes, apenas atraídos pela curiosidade.
“Pura maldade. Como houve um ataque a tiros contra uma pessoa ligada a uma das gangues, a quadrilha inimiga sequestrou esses meninos e matou por vingança contra os tiros que foram dados em uma pessoa do grupo”, disse o chefe da 16ª Delegacia Regional de Linhares, Fabrício Lucindo. Essa versão foi também sustentada pelo secretário de Estado de Segurança, coronel Ramalho, na coletiva em que foi anunciada a elucidação do caso.
TRAGÉDIA REPETIDA
De acordo com narrativas de familiares, Cauã Loureiro e Wellington Simon ouviram falar dos tiros, subiram na bicicleta para irem ao local do atentado e chamaram Carlos Henrique, 14 anos, que também apanhou uma bicicleta e foi junto com eles. Pois é justamente este último menino, Carlos Henrique Trajanos, o personagem de uma dupla tragédia.

Quando tinha apenas 10 meses de idade, Carlos Henrique teve a mãe assassinada por traficantes na Baixada com requintes de muita crueldade – o pescoço foi cortado, a barriga aberta e a cabeça colocada dentro da barriga, numa cena que chocou a população de Sooretama, há 14 anos.
“Foi uma das coisas mais horrorosas que aconteceram em nosso município”, contou Edson Isidoro Ferreira, que na época tinha um site, Sooretama em Foco, foi ao local e noticiou o acontecimento.
No episódio do dia 18 de agosto deste ano, um irmão mais velho de Wellington Simon também foi ao local de bicicleta e mandou que os meninos voltassem para casa, porque ele, o irmão mais velho, iria à casa do sogro. Depois disso, os três meninos desapareceram. Após duas semanas, nesta sexta-feira (1), a polícia encontrou os três enterrados em meio a uma plantação recente de eucalipto.
Apontado pela polícia como o autor do triplo homicídio, com requintes de crueldade, o traficante Marcos Vinicius Coutinho de Carvalho, o Caíque, de 20 anos, foi preso após trocar tiros com policiais militares na tarde de sexta-feira (1), enquanto a Polícia Civil desenterrava os três corpos em adiantado estado de decomposição.
A Tribuna Norte-Leste conversou, com exclusividade, com o pai adotivo de Carlos Henrique, o trabalhador rural Milton Trajano Gonzaga, 42 anos, o Tuca, ainda transtornado com o episódio. Ele estava em uma pousada na Grande Vitória, junto com a sua atual mulher, Leila, para cuidar dos trâmites legais sobre a liberação dos restos mortais do filho.
Tuca contou que era casado com Creusa do Nascimento, a mãe adotiva de Carlos, quando o menino ficou órfão aos 10 meses, devido ao assassinato da mãe, que era envolvida com o tráfico de drogas naquela região.
“A avó dele, dona Rosa, que ainda mora no Areal até hoje, mas com quem a gente não tinha nenhum contato, ficou com o menino, mas não tinha condições de criar e resolver dar. Soubemos disso, a gente não tinha filhos, e falamos: vamos pegar essa criança para criar. E fizemos toda a parte legal com o juiz para adotar o Carlos Henrique”, disse Tuca.
Milton Trajano disse que não conhecia a mãe assassinada de Carlos e nem sabia quem era seu pai. “O próprio menino não sabia de sua história. Nós éramos os pais dele e acabou. Quando eu e Creusa nos separamos, ele ficou com ela, mas a gente convivia muito. Ele ficava com ela e ia sempre lá em casa. Tomava bênção de tia para a Leila e para suas irmãs. Era uma criança bem educada e obediente. Quando aconteceu tudo isso, eu fiquei desesperado. Para todos nós, foram os piores dias da vida”, disse.
Segundo Tuca, quando surgiu a notícia de que os corpos haviam sido encontrados na plantação de eucalipto, ele ficou sem chão: “Fiquei desesperado, desorientado, peguei minha biz e saí correndo pelas ruas até a delegacia. Quando cheguei lá, eles confirmaram. Eu não consigo entender tudo o que está acontecendo. Vou-me embora da cidade, vou para a roça. Não consigo mais viver ali”.
O pai ainda tinha esperança de encontrar o filho vivo, mas na última semana estava com um pressentimento muito ruim: “Eu não sabia o que fazer da vida. Fizeram aquela busca de cinco dias e não acharam nada. Tudo o que a gente tinha de informação corria atrás. Eu senti um aperto no peito, depois que a polícia parou de buscar, como uma dor muito forte no coração, que parecia querer saltar para fora. Eu falei: gente, nunca senti isso. Acho que alguma coisa muito ruim aconteceu com o meu filho”.

Tuca era um dos participantes da manifestação que fechou a BR 101 por quatro horas no final da terça-feira, dia 22, para cobrar das autoridades maior empenho na apuração do crime. Com a vizinha Linhares em festa, os familiares passaram o fim de semana no desespero. A delegacia da cidade estava fechada desde às 16h30 da sexta, dia 18, e no final de semana havia apenas dois policiais militares no Destacamento local, e três no domingo. Os bandidos pareciam ter isso por estratégia ao agirem livremente.
São 14 anos entre a morte da mãe de Carlos Henrique, pelas mãos do tráfico, e, agora, a do próprio Carlos, também pelas mãos do tráfico. A diferença é que, segundo os moradores mais antigos, a mãe estava envolvida com o crime, o menino, assim como seus dois companheiros, passava longe disso, conforme já foi confirmado pela Polícia Civil.
Como se vê, nesse período, a crueldade dos criminosos que dominam os bairros mal formados pela omissão do poder público, acompanhou os passos de progresso econômico de Sooretama, a 150km de Vitória.
Três pessoas estão presas – Marcos Vinícius, o Caíque, o motorista de aplicativo Edimar Dias, dono do celta vermelho que transportou os meninos para serem assassinados, e um menor, cuja participação no crime ainda não foi informada – e uma quarta está com pedido de prisão decretada pela Justiça: um homem que participou da troca de tiros com policiais militares na tarde de sexta-feira (1) e que teria também participado do assassinato dos três adolescentes.
*José Caldas da Costa é jornalista e geógrafo, diretor do site TNL
Tuca, participando da manifestação na BR 101, adotou Carlos Henrique com menos de 1 ano de idade
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