*Geraldo Hasse
Este ensaio focaliza um fenômeno histórico pouco estudado: a expansão da soja em território brasileiro.
Em cerca de 50 anos a leguminosa Glycine max fez o equivalente ao que haviam feito a gramínea Saccharum officinarum (cana-de-açúcar) e a rubiácea Coffea arabica (café) nos seus devidos tempos.
Se a cana-de-açúcar lembra os tempos coloniais e o café recorda a transição do império para a república, a soja tem a cara do Brasil surgido depois da Segunda Guerra Mundial. Um país que trocou a letargia litorânea pela aventura da ocupação do Brasil Central, onde, no espaço de duas ou três gerações, nasceram centenas de cidades cujo dinamismo brota nitidamente das atividades agrícolas.
A soja foi o estopim, o agente, o símbolo de uma revolução praticamente desconhecida nas escolas, nas empresas e nas repartições públicas.
Durante décadas, desde o primeiro registro do seu aparecimento num sítio da Bahia em 1882, a soja ficou restrita às hortas dos imigrantes japoneses no interior paulista e às roças dos colonos europeus da zona missioneira do Rio Grande do Sul.
Os asiáticos a comiam, os europeus a davam aos porcos. Nas escolas agrícolas, os professores não lhe poupavam elogios mas, economicamente, a planta era pouco mais do que zero.
Desde o princípio a soja rolou sobretudo nas mãos dos estrangeiros que viviam entre nós. Em 1938, quando o Brasil embarcou, em Porto Alegre, a primeira carga de grãos de soja – provisão para uma Alemanha pronta para a guerra –, delineou-se sua vocação para o mercado externo.
A aptidão como matéria-prima agroindustrial só seria explorada um pouco mais tarde, nos anos 1940, quando algumas fábricas começaram a admitir a hipótese de adicionar óleo de soja aos “óleos graxos” de origem vegetal produzidos sobretudo no estado de São Paulo para atender aos chamados “paladares exigentes” ou a quem tinha problemas de saúde por causa das gorduras usadas no Brasil, principalmente banha de porco.
A primeira lata de óleo de soja produzido no Brasil, no princípio da década de 50, teve o nome Santa Rosa, em homenagem à cidade gaúcha onde a planta chinesa obteve a melhor acolhida. E assim começou a se cumprir um sólido destino.
O grãozinho oriental ajudou o Brasil a acordar de um sono litorâneo de 400 anos e o fez sair em marcha para o oeste e para o norte. Inicialmente a cavalo no trigo, depois pelas suas próprias forças, a soja foi o pivô da ocupação agrícola do cerrado, fincando em solo do Brasil Central as raízes de uma nova civilização.
A corrida da soja espalhou pelo Brasil milhares de colonos de origem européia-gaúcha que saíram do Sul atrás de terra barata e receberam do governo formidável estímulo para a expansão da fronteira agrícola.
Abrir estradas, implantar lavouras e fundar cidades tornou-se uma espécie de missão sagrada dos sulistas adeptos entusiastas da agricultura mecanizada.
O ciclo da soja foi rápido e já em 1982, por ocasião do fim do “milagre econômico” brasileiro, houve quem dissesse que não tinha sido bom. No Sul, concluiu-se que ela fora boa para poucos e ruim para muitos.
Como uma espécie de menina dos olhos das autoridades econômicas do regime militar vigente no período 1964/1985, a soja tornou-se um ente diferenciado no meio agrícola brasileiro. Apesar de embalada por uma certa mística de redentora dos famintos – para o que muito contribuiu o empenho de técnicos como José Gomes da Silva na difusão do poder nutricional da soja –, ela marcou o fim do romantismo na exploração da terra. A agricultura colonial de subsistência morreu nas garras da mecanização imposta pela lavoura sojeira.
A soja deu um novo corpo à agricultura brasileira, fortaleceu e diversificou a agroindústria, sustentou a ampliação da suinocultura e da avicultura, motivou a modernização da infraestrutura de transporte e modificou hábitos alimentares.
A soja alimentou a esperança de milhões de pequenos agricultores e depois, com crueldade até, mostrou que na terra é preciso ser profissional para ter competitividade.
Sob o império da soja, o arado, símbolo da agricultura, atingiu o ápice e entrou em decadência. A revolução da soja impôs as técnicas de semeadura direta nos campos enquanto nas cidades deu asas a um fenômeno internacional conhecido por agribusiness.
A soja propiciou uma dupla modernização do Brasil. Primeiro, fez este país voltar-se para dentro de si mesmo, iniciando (sem o menor respeito ambiental, é bom lembrar) a exploração de grande regiões do interior, especialmente nos cerrados do Centro-Oeste.
Por outro lado, a soja obrigou o Brasil a se organizar melhor para operar eficientemente no mercado internacional. Nesse duplo movimento, um para dentro, outro para fora, in e yang, o rico grãozinho nativo da Manchúria mudou o curso da agricultura brasileira.
Em resumo, sob inspiração norte-americana, participaram desse empreendimento sócio-econômico os seguintes atores:
– agricultores dispostos a crescer segundo o modelo americano de mecanização da lavoura
– fabricantes de óleos vegetais e de rações animais
– indústrias de máquinas e implementos agrícolas
– fábricas de adubos e de agroquímicos
– criadores de aves, suínos e bovinos
– ramos tradicionais e modernos da indústria alimentícia
– exportadores de commodities
– técnicos especializados em melhoramento genético e cuidados fitossanitários
– governantes conscientes da necessidade de gerar receitas cambiais para honrar compromissos internacionais do Brasil.
– consumidores em cuja vida a soja aparece não só como um alimento nutritivo e saudável, mas como uma matéria-prima extraordinária.
A presença da soja no cotidiano do Brasil moderno começa com a margarina no café da manhã, passa pelo óleo de soja usado na cozinha, está no hambúrguer, na salsicha, nos matinais, nos pães especiais, nos achocolatados.
Se a cana é a mãe inconteste da agricultura brasileira desde o século XVI e o café reinou soberano por mais de 200 anos, a soja fez por merecer o título que batiza este ensaio: a rainha do agronegócio.
(*) Geraldo Hasse, jornalista formado na UCPel(Pelotas, RS), em 1968. Com uma trajetória profissional marcada por passagens pelos mais importantes veículos de comunicação do país (revistas Veja, Exame e Placar; jornais Folha de S. Paulo e Gazeta Mercantil), e autor de treze livros-reportagem relevantes, Geraldo Hasse é um dos mais destacados jornalistas brasileiros.
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