Pedro Valls Feu Rosa*
Dia desses tive a oportunidade de ler, da escritora norte-americana Ursula Le Guin, algumas linhas sobre “aqueles que fogem de Omelas”.
Dizem que a vida lá era um paraíso. Todos eram felizes. Havia apenas um porém – um segredo vergonhoso, materializado em uma criança mantida em um porão, na miséria, sofrendo muito.
A autora do texto não diz o que aquela criança fez para merecer tão cruel condenação – apenas realça ser o seu martírio necessário para a felicidade de Omelas. Registra que, caso a criança fosse libertada, tudo que fazia a cidade feliz desapareceria.
“Todos sabem que ela está lá, todo o povo de Omelas”, escreve. “Alguns vão lá vê-la. Outros se contentam em apenas saber que ela está lá. Todos sabem que ela tem que estar lá. Alguns entendem o motivo, outros não, mas todos compreendem que sua felicidade, a beleza de sua cidade, a suavidade de seus relacionamentos, a saúde de suas crianças, a sabedoria de seus estudantes, o engenho de seus trabalhadores e até a abundância de suas colheitas e a serenidade do céu dependem exclusivamente da abominável miséria daquela criança”.
A maioria aceitava este informal contrato social. Mas nem todos estavam satisfeitos – e assim iam embora. “Eles deixavam Ormelas, seguindo rumo ao desconhecido, e não voltavam mais. O lugar para o qual se dirigiam é ainda mais inimaginável para a maioria de nós que a cidade da felicidade”.
Não há necessidade alguma de um mergulho na imaginação para visitarmos o porão no qual vivia aprisionada aquela pobre criança, vítima de um absurdo contrato social – basta irmos às periferias de nossas maiores cidades e lá estará ela denunciando, com seus gemidos, nossa omissão.
São bolsões de pobreza nos quais a ausência do Estado é quase total – as autoridades lá não entram, dado estar o território entregue a marginais. Daí decorre a falta quase que total de saúde, saneamento, educação e, principalmente, de esperança, este tão necessário combustível de nossas almas.
Quando as crianças do porão se atrevem a alguma escapadela invariavelmente encontram a brutalidade das barreiras que lhes são impostas pela majestade das leis que, na fina ironia de Anatole France, proíbem tanto os ricos como os pobres de dormir debaixo da ponte. Que retornem, pois, ao porão de onde saíram!
*O desembargador Pedro Valls Feu Rosa é articulista de diversos jornais com artigos publicados em diversos Estados da Federação, além de outros países como Suíça, Rússia e Angola.
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