*Wagner Carmo, advogado e professor universitário
A sociedade brasileira acompanha a ruina do Estado Democrático de Direito a partir do surgimento de leis dissociadas da fonte legitima do poder – o povo.
Embora existam leis elaboradas formalmente, de acordo com o devido processo legislativo, seu conteúdo não representa, necessariamente, os anseios do povo.
Diversas normas são impostas a contrário sensu dos anseios da população, atendendo aos grupos que querem usurpar do povo suas prerrogativas em benefício próprio.
É dever de cada cidadão brasileiro vigiar a ação dos poderes constituídos, desfazendo o equívoco hodierno de que os legisladores, quando eleitos e empossados, recebem uma procuração ad judicia et extra, cujas ações não prescindem da oitiva da população.
De muito a sociedade brasileira firmou entendimento de que a democracia não se resume ao voto, sendo essencial o envolvimento da população por meio de uma cidadania ativa;
aquela que compreende, dentre outros aspectos, o voto, a participação em audiências públicas e conselhos populares/institucionais.
A representação do povo requer mais que a eleição de um legislador, exige que o poder constituído oportunize canais de participação popular, seja por meio de consultas públicas, de audiências públicas, de plebiscito e de conselhos sociais. O estabelecimento de marcos legais demanda a atenção dos mandatários quanto ao debate com a sociedade.
No Brasil, exemplos de modelos de participação popular no processo decisório não faltam. Exemplo típico é o fato de que no Brasil as diretrizes e as políticas governamentais na área ambiental, desde de 31/agosto/1981, são realizadas com o auxílio do Conselho Nacional de Meio Ambiente – Lei nº. 6.938; órgão cuja representação é paritária entre representantes do Estado e representantes da sociedade civil.
A ideia de democratizar o debate e oportunizar a participação da população nas decisões de gestão e controle das políticas públicas evoluiu e os conselhos se multiplicaram para área de saúde, educação, assistência social, cultural, criança e adolescente, dentre outros.
O Poder nasce do povo por meio do debate de ideia, do respeito à ciência e da civilidade nas relações; todavia, a disputa de poder político, econômico e moral vem subvertendo a natureza da democracia e o objeto do direito.
Os fatores reais de poder, que antes estavam ligados apenas ao poder econômico, agora possuem tentáculos no submundo do crime organizado e no complexo sistema de desinformação atrelado às Bigtechs.
O direito tornou-se aquilo que os detentores do direito de legislar compreendem como sendo o “melhor para a sociedade”, inobstante a sociedade não tenha tido a oportunidade de escrutinar os projetos de lei ou debater as políticas institucionais.
A engenharia que perverte a democracia conta com o apoio do crime organizado que, sincronizadamente, ocupa o poder de forma institucional, corrompe as estruturas do Estado, manipula os processos e as contratações que resultam em gastos públicos e impinge medo, ressuscitando a violência pelo silêncio ou pela morte e, ainda, renova o modelo do voto de cabresto, uma versão atualizada da política do coronelismo junto às comunidades mais empobrecidas.
De outro lado, há uma rede de desinformação pensada, planejada e elaborada a partir de uma estrutura complexa e com vultuosos investimentos financeiros que abastece as redes sociais com vídeos e áudios capazes de obstruir o acesso à verdade pura e racional. A desinformação atua a partir do sentimento de paixão, fantasia e fanatismo.
A desinformação não nasce da naturalidade das relações humanas ou do conhecimento cientifico, antes, é uma forma de comunicação perspicaz, que compreende ser a comunicação o centro do poder político e econômico.
Concebida com o objetivo de gerar ignorância e bloquear o caminho para o acesso ao verdadeiro conhecimento, a desinformação gera risco à democracia, ao Estado de Direito e à vida.
Nesse sentido não faltam exemplos, como é a situação da desconfiança em relação à vacina e às urnas eletrônicas de votação.
O Brasil de outrora, imune a doenças, não existe, pois, a população, propositadamente desinformada, passou a não acreditar na vacina. De igual modo, o processo eleitoral, que ano a ano foi realizado com sucesso e sem qualquer notícia de fraude, passa por descrédito oriundo da disseminação de desinformação.
Cientes da dificuldade do cidadão em compreender os mecanismos da desinformação, mandatários sem escrúpulos aproveitam a oportunidade para gerar e aprovar leis oportunistas e dissociadas da realidade ou imbricadas com a moral religiosa.
Bancadas multipartidárias e com interesses quase sempre de ordem eleitoral ou econômica não hesitam em aprovar projetos em violação à dignidade da pessoa humana (i), que geram benefícios aos grandes empresários e banqueiros em detrimentos dos trabalhadores (reforma trabalhista, desregulamentação do trabalho, ausência de debate sobre a situação dos trabalhadores por aplicativo, subsidio fiscal para empresas); (ii) que alteram e flexibilizam a legislação ambiental em oposição à sustentabilidade; (iii) que propagam a cultura da violência, flexibilizam a aquisição e o porte de armas, propagando a cultura do “bandido bom é bandido morto”, como se o conceito de bandido já estivesse previamente estabelecido ou ignorando que também é bandido quem usa colarinho branco; (iv) que confundem o Estado com a Religião, impondo dor e sofrimento às mulheres e limitando os direitos relativos à identidade de gênero, dentre inúmeros outros exemplos.
O Parlamento Brasileiro parece haver esquecido a história ou não conhece a história (quem não conhece a história tende a repeti-la), pois, de certa forma, estamos regredindo enquanto sociedade, voltando o ponteiro do relógio para o passado sombrio e obscuro da era das trevas, permitindo o retorno dos déspotas; admitindo a redução dos direitos essenciais à dignidade da pessoa humana; sentenciando à morte tudo que é diferente do “padrão” de gênero; flertando com a ditadura, com o poder das armas, com a limitação da liberdade; admitindo a escravidão sob o codinome de trabalho por aplicativo e ignorando a ciência em nome de vendilhões do templo.
A banda Legião Urbana, por meio de uma de suas canções, advertiu:
(…) Abra os olhos e o coração
Estejamos alertas porque o terror continua
Só mudou de cheiro e de uniforme (…)
Abrir os olhos à realidade política, econômica e socioambiental é uma exigência que se impõe a todos. O Fórum Econômico Mundial, com base em quase duas décadas de dados originais de percepção de riscos, alerta para um cenário de riscos globais em que o progresso no desenvolvimento humano está sendo enfraquecido lentamente, deixando Estados e indivíduos vulneráveis a riscos novos e ressurgentes.
Em um contexto de mudanças sistêmicas na dinâmica do poder global, clima, tecnologia e dados demográficos, os riscos globais estão levando a capacidade de adaptação do mundo ao seu limite.
Especialistas em riscos globais, políticos e líderes empresariais ouvidos pela Zurich Insurance Group e a Marsh McLennan, em setembro de 2023, apontaram uma perspectiva, predominantemente, negativa para o mundo no curto prazo, que deve piorar no longo prazo.
Na rota do mundo há catástrofes globais, aumento da desinformação impulsionada pela inteligência artificial (a relação entre informações falsas e agitação social ocupará o palco central nas eleições que devem ocorrer nos próximos anos em várias economias importantes), o conflito armado entre Estados e as tensões geopolíticas subjacentes estão criando um contágio de conflitos. A lista do Fórum Econômico Global classifica os dez principais riscos imediatos e mediatos:
10 principais riscos – Global Risks Report 2024
Deve-se avaliar o provável impacto (gravidade) dos seguintes riscos durante um período de 2 anos e de 10 anos.
Riscos 2 anos
- Desinformação e informação falsa
- Eventos climáticos extremos
- Polarização social
- Cibersegurança
- Conflitos armados interestaduais
- Falta de oportunidades econômicas
- Inflação
- Migração involuntária
- Recessão econômica
- Poluição
Riscos 10 anos
- Eventos climáticos extremos
- Alterações críticas nos sistemas da Terra
- Perda de biodiversidade e colapso dos ecossistemas
- Escassez de recursos naturais
- Desinformação e informação falsa
- Resultados adversos das tecnologias de Inteligência Artificial
- Migração involuntária
- Cibersegurança
- Polarização social
- Poluição
O Brasil parece estar em uma “bolha”, imune (mesmo sem acreditar nas vacinas) aos problemas globais. O Congresso Nacional, em sentido contrário à ciência, em relação aos problemas de escassez de recursos naturais, eventos climáticos extremos, poluição, alteração crítica nos sistemas da Terra e perda da biodiversidade/colapso do ecossistema – discute leis, por exemplo, para flexibilizar a legislação de proteção ambiental e o licenciamento ambiental.
Já em relação à desinformação e à cibersegurança, ignora-se a necessidade de regulação do uso das redes sociais sob o falso argumento do cerceamento da liberdade de expressão, engavetando projetos de leis sobre o tema e, ao mesmo tempo, usando a democracia para desinformar.
Há espaço para inúmeros outros exemplos de insensibilidade política e oportunismo legislativo, mas, seria desrespeitoso com o leitor enfadá-lo repetindo o cotidiano dos noticiários políticos.
Contudo, é necessário concluir que as pautas do Congresso Nacional estão desalinhadas com as necessidades da população brasileira e que, muitas vezes, parece marchar no sentido anti-horário, regredindo para constituir uma república medieval.
Mas, como cantava Belchior,
Mas não se preocupe meu amigo
Com os horrores que eu lhe digo
Isso é somente uma canção
A vida realmente é diferente
Quer dizer: Ao vivo é muito pior
Comente este post