*Erly Euzébio dos Anjos
Ao ser perguntado pelo nosso editor José Caldas – que pesquisa a família – sobre a veracidade de uma informação de atividades na luta de minha mãe travou contra a invasão dos mineiros da cidade fronteiriça de Mantena, à Barra de São Francisco, titubeei ao responder que sim. Levado pela importância atual de não produzir fake News, ou mentiras, resisti em confirmar. Por mais sedutor que fosse esse ato heroico de dona Samina, que ao saber da possível invasão de soldados mineiros ao território espírito-santense nos escondia embaixo do assoalho (num sótão!) e com o pé na portinhola para nos proteger, empunhava na mão uma espingarda, não quis alimentar a lenda.
Contando, isso parece uma cena cinematográfica e encaixa bem na figura e personalidade de nossa mãe, de mulher tida como brava e destemida de uma heroína, mas não tenho como comprovar a veracidade do fato ao ser perguntado. Só sei que faz parte de uma narrativa em família. Em nome de se distinguir a verdade de algo que poderia ser imaginado prefiro ficar com o que pode ser comprovado.
Digo isso para trazer à tona um problema que parece nos rondar cotidianamente que é: distinguir entre o que é uma realidade de uma paralela ou falsa. Entre o que são fatos empíricos, que podem ser atestados, de das notícias inventadas ou simplesmente de mentiras.
No auge da disputa política entre a extrema direita e o pessoal da esquerda progressista era mais comum ouvir este embate entre o que é real é que não é. Embate que podia desembocar em agressões verbais, físicas e até mesmo em mortes. Há um tempo achei que este confronto havia se amainado, mas com o recente protesto em apoio ao ex-presidente, na Avenida Paulista surge um vídeo em que uma senhora, portando uma bandeira de Israel, fala de crianças sendo queimadas ao vivo em fornos pelo Hamas!
O que são fatos e o que são fakes estão longe de se extinguirem. Pessoalmente ainda sinto dificuldades em engajar-me numa conversa amistosa quando não há esta distinção de antemão. Silencio-me o que não é aconselhável para quem acredita em diálogo como meio de ouvir o contraditório para se chegar a uma síntese que transcenda o que já é conhecido como verdades estabelecidas.
Acabo de assistir um documentário (no Netflix) chamado Relato Final que reúne entrevistas inéditas com a ultima geração de pessoas que participaram do Terceiro Reich de Hitler. É impressionante a comparação que pode ser feita com o que dizem estes distintos senhores, acima de seus 80 anos, com os nossos idosos que persistem em viver numa realidade paralela. As entrevistas nos tempos hitlerianos não são relatos homogêneos: há discordâncias entre eles em pensamentos e atitudes. Alguns que participaram diretamente nos campos de concentração sofrem com a culpa do extermínio (considerado incomparável) de judeus, ciganos e das e pessoas inválidas. Outros que participaram indiretamente, mas sentem-se igualmente culpadas. Em geral, se envergonham de ser alemães e padecem com este impacto aos dias de hoje. Um quadro depressivo de se ver.
O que mais chama a atenção são os que não acreditam que houve o holocausto! Que não aconteceu e dizem que são invenções dos judeus e de outros no Ocidente. Se nota, nos entrevistados que rejeitam, um olhar de desconfiança quando relatam suas experiencias sob a tutela de Hitler. Como se tivessem sofridos uma lavagem cerebral. A devoção ao líder fora em demasia para acreditar que houve a decisão da “solução final” ao povo judeu. Se orgulham de sua herança ariana, de uma raça tida como superior, ao examinar seus documentos e símbolos nazistas que cultuam. Como deve ser difícil viver no limbo entre o que sucedeu de fato com a crença em ilusões. Como parece ocorrer hoje com muitos de nós.
É daí que surge a triste ideia de que “uma mentira repetida mil vezes se torna uma verdade” por conveniência. Muitas vezes mentiras e notícias falsas são compartilhadas por outros, da manada, que não aceitam contra-argumentos ou a possibilidade de se pôr em dúvida o que creem. Escutar o outro significante, formular novas perguntas e, como diz Nelson Rodrigues aceitar “a vida como ela é”, pode ser mais difícil. Lembro que escritores e cineastas tem uma licença poética e literária para inventarem livremente da ficção para alargar a realidade, mas o comprometimento com a verdade, com os fatos comprovados é a melhor tônica para uma vida mais saudável. E é o que temos para nos segurar na vida.
* Erly Euzébio dos Anjos é Sociólogo e Professor Aposentado da UFES
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