
“Hoje, penso nos 20 anos de minha vida que joguei por amor a esse aqui, o Brasil, que amo. Um Brasil que seja dos brasileiros e não do império americano”. A última fala de Araken Vaz Galvão no filme “Caparaó”, do cineasta Flávio Frederico (vencedor do festival É Tudo Verdade, 2006) marca o espírito indomável de homens (em muitos casos, também de mulheres que eram suas companheiras e a tudo suportaram) que ousaram desafiar a força da ditadura civil–militar que se impôs a o Brasil a partir do golpe de 1964 contra o governo constitucional de João Goulart.
Agora, Araken Vaz Galvão mergulha, definitivamente, no panteão dos heróis nacionais. Baiano de Jequié (20.05.1936), entrou para as Forças Armadas na década de 50, foi expulso quando era sargento num dos primeiros atos institucionais em 1964, e, na redemocratização, foi reparado e promovido a Capitão do Exército. Viveu as últimas quatro décadas ao lado da capixaba Euzedir Anchieta, professora, na história Valença, que a maioria dos brasileiros conhece mais como passagem para a turística Morro de São Paulo.
A última batalha era ingrata. Anos de uma doença fatal, em metástase. Mas ele jamais deixou de sonhar. Em nosso último encontro, em abril deste ano, em Salvador, onde passou a morar nos últimos anos, ali pelas bandas do Farol da Barra, justamente para ficar mais perto de recursos médicos, falava-me com entusiasmo de seus projetos. Ao dar-se conta de seu estado, reagiu com bom humor: “A morte está aqui me rondando, mas, se ela facilitar, dou uma rasteira nela e sigo em frente”. Em deu uma gostosa gargalhada, dolorida, mas gostosa.
No último contato, numa ligação na semana passada, parecia antever o que agora se tem, ao queixar-se das dores enquanto comentava sobre a morte recente de minha sogra (2 de novembro), depois de quase três anos em cima de uma cama, parecia querer revisitar o passado.
Comentou sobre o livro que recebeu de Jelcy Rodrigues Júnior, filho de seu antigo colega combatente Jelcy Rodrigues, com quem dividia o subcomando da Guerrilha do Caparaó e também divergia, basicamente por conta de um episódio em que foi baleado pela sua, então, mulher em Porto Alegre nos preparativos para um possível levante da Brigada Militar, dentro dos planos de Leonel Brizola, antes que o velho líder gaúcho apoiasse o movimento de resistência armada por meio de guerrilha. “Vou ligar para o filho dele, tenho que parar com essas bobagens que fazem parte do passado”, comentou.
Não deu tempo de ligar para Jelcy Júnior, porque a doença se agravou e ele logo foi internado. Mas, morrer não fazia parte de seus planos. Na mesma ligação, ele me contou que estava escrevendo um novo livro, das dezenas que já produziu. Só que este já tinha até título: “O último livro”. E os planos eram ambiciosos: “Vai ter 1.100 páginas”. É o livro incompleto que ele nos deixa em possíveis manuscritos no caderno que mantinha na cabeceira de seu leito de dor.

Fosse eu falar do que foram esses últimos 25 anos de convívio com Araken, daria um outro livro. Uma amizade sólida que se estendeu a toda minha família. Nutria carinho especial pela Euzi, minha esposa, e pelos meus filhos. Na nossa última estada física juntos, gravou um vídeo para cada um deles: Jessé, Lídia e Júnior. Cada vídeo, personalizado. Era assim, Araken, enxergava as pessoas de forma única.
A notícia de sua morte, na última batalha contra o câncer, no leito de um hospital em Salvador, pegou-me de surpresa na noite desta segunda-feira, 4 de dezembro. E lágrimas teimosas correram-me na face. E ainda teimam quando falo nele. Durante a noite, enquanto eu dormia, encontramo-nos mais uma vez, num sonho que me recordo de relance, em que chovia muito e ele se afastava aos poucos enquanto eu tentava proteger uma livraria, fechada, com cortinas internas que não permitiam ver os livros.
Como sou grato pelas conversas em diversas ocasiões. De todos os que entrevistei para o livro (“Caparaó, a primeira guerrilha contra a ditadura”, Boitempo, 2007, Prêmio Vladimir Herzog), Araken foi o mais chegado e nos visitamos várias vezes, quando ele ainda tinha forças para vir a Vila Velha visitar a família de Euzedir, e quando eu fui à Bahia. Em Valença ou em Salvador. Sempre foram encontros ricos em experiência humana.
Permitiram os céus que até o último momento fossem-lhe preservadas a visão, para que lesse um a um os livros que amava (em seu último aniversário, nós, os amigos, reunidos pela filha que adotou, a Juscy, fizemos chegar ao seu apartamento dezenas de livros escolhidos por ele mesmo e que, agora, vão compor o imenso acerto de sua fundação em Valença), e a cognição, para que não deixasse passar em vão cada segundo de vida.
E assim se vai o intelectual brilhante (04.12.2023), o cineasta, o cronista, o escritor (“O Jagunço Velho” é uma aula da história de passagem do Brasil do coronelismo para a sociedade democrática) e, acima de tudo, o amigo e conselheiro. Um patriota que deu os melhores anos de sua vida por amor ao Brasil, como costumava dizer. “Não seríamos dignos de nossa geração se não fizéssemos o que fizemos”, dizia ele. Seu corpo inanimado será transformado em cinzas na tarde desta terça-feira (5), em Salvador, a serem depositadas aos pés de uma árvore no quintal de sua casa em Valença.
Posso sair da posição de sentido, Capitão?
“Estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e foste me ver”. (Jesus Cristo em Mateus 25:36)
*José Caldas da Costa é jornalista, escritor, diretor do site Tribuna Norte-Leste
Foto da capa: reprodução de cena do filme “Caparaó”, de Flávio Frederico (2006)
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