*Erly dos Anjos
Tanto se falam sobre o poderio das milícias, quando queimaram 35 ônibus no Rio de Janeiro no mês passado, que a pergunta que não se quer calar é: temos “milícias” no Espírito Santo? Há quem diga que sim; outros que não e há os que duvidam.
Sou um dos que acham que a sua existência como tal é ainda incipiente, precisa de melhor qualificação. Mesmo porque, é preciso primeiro conhecer melhor o fenômeno para saber o que fazer. Para evitar, como dizem: “enxugar gelo”.
A imprensa local elenca nomes de várias facções criminosas presentes no estado, a princípio tidas como filiais de poderosos e tradicionais grupos do crime organizado no Rio e de São Paulo. Sendo o Comando Vermelho (o CV) e o Primeiro Comando da Capital (o PCC) os mais conhecidos.
Há relatos de alianças feitas desses com grupos locais, de elementos perigosos e chefes de quadrilhas que migram para cá ou de outros que passam tempo fora fazendo contatos e arranjos para se organizar (tipo ano sabático?).
Investigações pela polícia Civil e Militar já conseguiram prender vários suspeitos, mas uma suposta “guerra” entre facções continua eminente. É comum tiroteios à luz do dia e de paralisações do transito e comércio, em algumas áreas da periferia das cidades de Vitória e Vila Velha, que afetam a todos. A informação de que pessoas em bairros residenciais, há pouco tempo tidos como tranquilos, almejam vender suas casas por temerem por suas próprias vidas! Mas será que temos milícias tais como as cariocas?
Conforme já disse antes em A República das Milícias, de Bruno Paes Barreto, e na série (Globo Play) “Está Escrito” sobre a contravenção do jogo de bicho no Rio me convenço que milícias é muito mais do que a obra de alguns desvairados jogando gasolina e botando fogo em ônibus. Os elos que unem a rede de negócios ilícitos e ilegítimos foram tecidos há muito tempo e estão hoje além de governos e instituições. É um outro mundo ou “o avesso do avesso”, como diria Caetano Veloso.
Parece que o caos em que vivemos tem uma trajetória na urbanização acelerada. Instalou-se uma noção válida, mas ingênua em algumas comunidades carentes de segurança e bem-estar, contra a ameaça de fora de um outro diferente e desigual.
Lembro-me de quando criança meu pai, que foi oficial da justiça, atendia em nossa sala de estar várias pessoas vindas da zona rural (da então cidade de Barra de São Francisco) solicitar ajuda e com inúmeras querelas. Desde a venda de uma leitoa fiado que não recebiam, a queixa amorosa de um marido cuja mulher fugiu com um outro! Vinham pedir na comarca da cidade que alguém letrado intercedesse com o Sr. Juiz ou delegado para que trouxessem justiça. Formavam uma fila longa, pois as carências eram muitas.
Assim, pessoas simples, humildes e honrosas tentavam alcançar os serviços do Estado, através da interseção e intermediários. Quando esses são ex-policiais que residem localmente se busca segurança contra ameaças de alguém ou de grupos que são constantes na criminalidade urbana e violenta.
Tudo muda quando esta relação de segurança comunitária se mercantiliza. Não são mais trocas de favores. Para se obter bens de primeira necessidade, como água, eletricidade, gás e mesmo bens de consumo como tv a cabo, transporte, moradia ou salas comerciais, são cobradas taxas. Às vezes, pequenas, outras exorbitantes, mas todas ilícitas e por meio da coerção. Foi-se o tempo que se pagava com galinhas, mantimentos ou simplesmente de graça.
Assim o núcleo miliciano se configura e prospera. Os serviços do Estado, outrora intermediados, são ausentes. Com o tempo estas relações se alastram, além de localidades remotas, numa teia de conexões com as autoridades da administração pública mais ampla que, por sua vez, se beneficiam. Criam-se “currais eleitorais”, ditam regras e até elaboram leis. Fica tudo dominado.
A denominação de milícia se metaforiza e se torna mais complexa, com relações obscuras entre a ordem e a desordem. Uma realidade social que se convencionou chamar de “Brasil profundo”. Políticos que usufruem destas conexões ganham eleições. Os que confrontam, perdem ou são eliminados. Isto é apenas algumas pinceladas para se distinguir genuínas milícias de facções criminosas que aqui se germinam.
Outra pergunta que não quer se calar é como enfrentar e impedir que se instalem aqui as verdadeiras milícias instaladas em todo o tecido social. Como transformar o “ciclo vicioso” num “ciclo virtuoso”, que alimenta o núcleo com seus tentáculos? Uma questão complexa que vale “um milhão dólares ou de euros”.
Existem tentáculos, diríamos estruturais, que afetam localidades, mas que se estendem além das fronteiras, como o tráfico de armas e drogas. Nenhuma das quais é produzida internamente. Por ora, se pode dizer que, primeiro, é preciso fazer um diagnóstico específico em cada local e de seu contexto. Segundo, e a partir de dentro para fora, empoderar as lideranças civis num processo de ação e participação comunitária e continua visando desconstruir as teias ilícitas com vigor e criar caminhos alternativos.
Investimentos, fiscalização da administração pública e do Estado são imperativas. Planos de ordem micro e macroestruturais têm que ser elaborados: a curto, a médio e a longos prazos. Fiscalização e avaliação de resultados não podem faltar para se corrigir rotas. São políticas públicas que ultrapassam governos e ideologias.
É possível que as milícias se ensejam por aqui, mas com especificidades próprias. É preciso conhecê-las para decifrá-las e contê-las, se é que ainda há tempo.
*Erly Euzébio dos Anjos – Sociólogo e Prof. Aposentado da UFES
Foto da Capa: Alex Ferro/VEJA
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