*Erly Euzébio dos Anjos
“Na ciência a verdade não é dada, revelada, e nem é absoluta. Tem que ser buscada; é aberta e pode ser alterada com novas evidências. Já na fé a verdade é revelada e não se questiona”.
Fraternidade, diálogo, convergência, coesão, respeito e tolerância são algumas das palavras contidas no artigo: “Fraternidade – Uma saída para a história” (TNL,14/10/2023), do pastor Usiel Carneiro de Souza. Parte de uma polêmica em sua Igreja Batista da Praia do Canto, em Vitória, em que alguns discordam sobre o direito de escolher a identidade sexual e adotar outras referências mais libertárias como fontes em suas pregações.
Chama a atenção sobre a pertinência de ser diferente num mundo atravessado por conflitos ideológicos e políticos, do Bem contra o Mal. Mas o que mais atiçou é sua coragem ao resistir ao movimento de expulsá-lo e escolher enfrentar com argumentos e diálogo.
O que já foi um confronto entre ideias de diferentes “visões de mundo”, há algumas décadas se tornou um embate violento e até mesmo atentados contra a vida. A distinção entre o que são fatos reais e o que se falsificam (os “fakes”) se perdeu. Assim como não são mais valorizados os fundamentos de cânones do pensamento cientifico para contrapor o senso comum ou simplesmente mentiras e boatos.
Sim, houve um retrocesso civilizatório principalmente, no governo passado, na comunicação entre os diferentes e contraditórios. Isso impossibilitou a exposição de ideias sobre um determinado assunto, de ouvir um contra-argumento e se chegar a uma síntese em que ambos usufruem da possibilidade de mudar seus pensamentos e avançar numa troca sadia de comunicação dialógica. Assim se podia literalmente conversar entre amigos, supostos inimigos, familiares e em sala de aulas.
Um processo, sim, difícil, mas que garantia um certo equilíbrio entre os diferentes, um acato à autoridade do outro, sem o autoritarismo. Condição indispensável para as conquistas de direitos sociais, identitários e ambientais que se despontavam no horizonte. É assim que se constrói a fraternidade e o processo da democracia.
Há os que rejeitam dialogar com opositores por que percebem que não veem possibilidades de contra-argumentar com mitos e crenças fundamentalistas (confesso que sou um deles), pois na ciência a “verdade” não é dada, revelada, e nem é absoluta. Tem que ser buscada; é aberta e pode ser alterada com novas evidências. Já na fé a verdade é revelada e não se questiona.
Quando ouço alguma informação nova sempre pergunto ao interlocutor aonde a encontrou. Qual foi a fonte? Não é necessariamente uma desconfiança à integridade da pessoa que revela a informação, mas porque desejo simplesmente compartilhar da fonte. Isso, porém, nunca é compreendido, pois veem a interrogação como um desacato pessoal. Ora os fatos, tais como existem, devem passar no mínimo por um critério de universalidade para verificar a veracidade no tempo e espaço. É o que distingue fatos reais de “fakes”, que são criações e invenções ao bel prazer, quando não são subproduto do ódio. Esta distinção é vital hoje em dia.
Considero o embate entre tendências da esquerda e da direita, nos seus extremos, também, crucial para enfrentar as questões: relativas ao gênero, meio ambiente, segurança pública, saúde, educação entre outras. Tanto a esquerda quanto da direita tem se digladiado com o que fazer em termos de políticas públicas para estas áreas. Isto basicamente porque não se pode considerar estas posturas políticas monoliticamente.
Há gradações em cada postura que se revelam na prática quando se pensam em política pública. Indico um livro, “A Crise das Esquerdas”, organizado por Aldo Fornazieri e Carlos Muanis, que debatem porque “as esquerdas teriam perdido a capacidade de dialogar com os novos grupos sociais emergidos da revolução tecnológicas”. Lançam muita luz sobre os impasses governamentais de hoje.
No caso da segurança pública, por exemplo, se observa que propostas para mitigar a violência nas grandes cidades, como no Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo, sob governos de diferentes tendências partidárias, caem na mesma vala comum. Carecem de medidas sustentáveis à pacificação e sobram ações de extermínio da população menos favorecida e de policiais numa guerra sem fim. Isto significa que a questão da segurança pública encontrou alento nem na esquerda nem na direita. É preciso avançar e mudar o paradigma.
Uma pedra no meio do caminho e no sapato do governo petista e a “frente ampla” a ser tratada. A dependência do petróleo e o aquecimento climático é outra pedra a ser removida. A questão de gênero e de raça também merecem o trabalho dos especialistas para superar os preconceitos e as teorias falsas sobre a supremacia branca e machista que ainda colorem os debates.
Nenhuma questão da sociedade pode ser compreendida sem relacionar com o seu contexto, examinando a trajetória histórica, suas contradições implícitas e em sua complexidade. Vejam o conflito que já se configura numa guerra entre os povos palestinos e judeus? Não se pode simplificar e tomar posição de um versus o outro sem remeter a seu contexto histórico e ao processo de demonização polarizada, de um versus o outro.
Acabo de assistir um documentário sobre o ex-presidente Barak Obama (no HBO Max) que mostra didaticamente como a questão racial que permeia a fundação dos Estados Unidos impede que se construa uma democracia duradoura.
Com o advento do ex-presidente Trump (e que aqui se seguiu quase à risca no último governo) pode se observar claramente que a luta por fraternidade e a desconstrução entre as polaridades: do Bem contra o Mal, do entre “nós” e “eles”, é um processo contínuo de luta política que está apenas começando.
(*) O autor é sociólogo, professor aposentado da Universidade Federal do Espírito Santo
Comente este post