*José Caldas da Costa
11 de setembro é uma data emblemática no Chile. O país amanheceu sob a lembrança do ataque aéreo sobre o Palácio de La Moneda, ocorrido em 1973, quando militares liderados pelo comandante do Exército, Augusto Pinochet, derrubaram o governo de Salvador Allende, que se suicidou para não capitular.
A lembrança ocorre num momento em que o Brasil, que nunca tratou adequadamente as questões relacionadas à ditadura militar, vive o julgamento de um ex-Presidente alvo de ação penal do Ministério Público Federal por atentar contra o estado democrático de direito, buscando apoio para impedir a posse do seu sucessor, o eleito Lula.
O clima de instabilidade culminou com a invasão das sedes dos três poderes por “manifestantes” que a tudo depredaram, no dia 8 de janeiro de 2023, pedindo a volta do regime militar e do abominável AI-5 – o ato institucional que inaugurou a fase mais sangrenta da ditadura militar brasileira.
Por que o holocausto, embora negado por alguns, é relembrado todos os anos e a propaganda do nazismo é crime em todos os países do mundo, embora sobreviva no imaginário de algumas pessoas? Relembrar para que nunca se repita.
Negar o movimento, inequivocamente, liderado por Bolsonaro visando a um golpe para impedir a posse do presidente eleito e, ainda, prender (ou matar, como surgiram nas investigações da Polícia Federal) lideranças políticas e do Judiciário, é brincar com fogo.
Cabe aqui relembrar fatos que vão caindo no esquecimento brasileiro, por terem acontecido antes de 1964.
Em 11 de novembro de 1955, um movimento militar insuflado pelo deputado federal da UDN Carlos Lacerda (ferrenho opositor de Juscelino), apoiado pelo presidente em exercício, Carlos Luz, tentou o mesmo que fez Bolsonaro: impedir a posse do eleito Juscelino Kubtscheck e seu vice João Goulart.
Não se deu o golpe pela posição firme de um militar legalista, o Marechal Henrique Teixeira Lott, então ministro da Guerra, que cercou com tanques o Palácio do Catete e garantiu a posse do eleito.
O ambiente golpista estava criado. JK assumiu, mas, na noite de 10 de fevereiro de 1956, o major Haroldo Veloso e o capitão José Chaves Lameirão sequestraram um caça no Rio de Janeiro, voaram para Jacareacanga, no Pará, e tomaram a base aérea. A revolta durou 19 dias e os golpistas tomaram vários povoados da região. Tropas legalistas conseguiram controlar o movimento com a prisão de Veloso.
O próprio Juscelino mandou ao Congresso a anistia para esses militares, com o propósito de “pacificar o país”, mas o que fez foi manter vivas as serpentes no ninho.
O mesmo Haroldo Veloso liderou outro movimento, conhecido como “Revolta da Aragarças”, tomando um avião da Panair, mas o golpe fracassou por falta de adesão e, desta vez, os golpistas se exilaram na Bolívia até o fim do governo de JK. Voltaram com a eleição de Jânio Quadros e não foram punidos.
Quando, em agosto de 1961, Jânio renunciou alegando “forças ocultas” (até hoje se discute sua verdadeira intenção com esse movimento, que seria voltar ao poder com apoio dos militares), os mesmos golpistas estavam por trás do movimento que tentou impedir a posse do vice, João Goulart (na época, o eleitor podia votar num presidente de uma chapa e no vice de outra, e foi o que aconteceu com a eleição de Jânio e Jango).
Desta vez, o golpe não se concretizou pela brava resistência do governador gaúcho Leonel Brizola, que levou o povo gaúcho a se entrincheirar em defesa da democracia, e pelo “jeitinho brasileiro”: criaram uma solução parlamentarista para tirar poderes de João Goulart. Somente assim os militares aceitavam sua posse. E quem convenceu Goulart a aceitar a condição foi um personagem que faria história nos anos seguintes na política brasileira: Tancredo Neves.
Dois anos depois, por meio de um plebiscito, o povo brasileiro escolheu a volta do presidencialismo, mas a corda já estava suficientemente esticada e, na noite de 31 de março para 1º de abril, o general Mourão Filho deslocou tropas de Juiz de Fora com destino ao Rio de Janeiro numa “tentativa de golpe”, que, desta vez, se concretizou por fragilidade do governo.
Os golpistas eram minoria quando cercados por tropas legalistas nas margens do rio Paraibuna e, na Base Aérea de Santa Cruz, o brigadeiro Francisco Teixeira, aguardava de Jango a ordem que não veio para bombardear os revoltosos e deu no que deu: nos 21 anos de noite na democracia brasileira.
Tomara que no final desta história não acabem sendo punidos os comandantes do Exército e da Aeronáutica, que se opuseram ao golpe proposto por Bolsonaro em reunião confirmada por eles mesmos, na qual o chefe do Exército, força mais antiga, chegou a ameaçar Jair de prisão se continuasse com aquela história.
Dias antes da posse de Lula, Bolsonaro voou para os Estados Unidos e ficou vendo, de longe, o circo pegar fogo. Quem sabe para voltar nos braços de seus apoiadores. Mas a democracia sobreviveu. Pelo menos desta vez. Que a Justiça faça seu papel.
*José Caldas da Costa é jornalista, geógrafo, autor do livro “Caparaó – a primeira guerrilha contra a ditadura”
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