O número de homicídios parece ser um medidor muito eficaz do grau de civilidade de uma comunidade. Porém, mais do que isso, expressa também o quão esgarçado encontra-se o tecido social.
Por isso, o controle desses índices é sempre prioridade para governantes. E, mais do que a força, os policiólogos apontam o trabalho de inteligência, de forma sistêmica, a principal arma do poder público para devolver a paz social à comunidade.
Em Pinheiros, no Norte do Estado, os métodos usados para se chegar aos bons frutos colhidos foram parar no “manual” (o anuário do Observatório de Segurança Pública do Espírito)
Recentemente, o município passou 200 dias sem homicídios. Um recorde que aparece também em outras tipificações criminosas, como roubos e furtos em via pública e roubos e furtos de veículos.
TRÁFICO
Quando se vê a Polícia fazendo pequenas apreensões de substâncias ilícitas, geralmente em comunidades, socialmente, vulneráveis, prendendo pessoas pobres, fica sempre a impressão do eterno “enxugar de gelo”.
Dentre as substâncias, predomina a cocaína, o crack (que é uma espécie de lixo resultante do processo de preparo da cocaína, com muita química) e a maconha.
Mas, principalmente, nas pequenas cidades, atacar a ponta (ou seja, o varejo) parece ser a melhor estratégia, embora se saiba que os pequenos e médios delinquentes reproduzam-se na velocidade de ramsters. Prende (ou morre) um, aparece outro
No último final de semana, policiais militares de Pinheiros, sede da 19a Companhia, criada para controlar a violência endêmica na região de grande desenvolvimento do agronegócio, fizeram pelo menos cinco operações que parecem pequenas, estendendo-se a outros municípios de sua jurisdição.
Nelas, apreenderam drogas diversas, dinheiro, armas, moto roubada, prenderam maiores e menores infratores, além de um indivíduo com mandado de prisão em aberto.
Mesmo assim, um adolescente foi morto a tiros num bairro com alta incidência de tráfico de drogas, rompendo um período de 200 dias sem homicídio em Pinheiros, um recorde da série histórica de 25 anos.
O último caso havia sido dia 9 de setembro de 2024, quando foi encontrada a ossada da menina Samantha no distrito de São João do Sobrado, depois de meses desaparecida. Até hoje não se sabe o que aconteceu.
“Desde que eu e o Major Gambarti assumimos o Comando da 19ª Companhia Independente, estimulamos o combate ao tráfico de drogas, pois a dinâmica criminal de crimes letais e patrimoniais estavam relacionados a este mercado pararelo”, disse o capitão Vitor Prates.
O major assumiu em julho e o capitão em agosto de 2022, pouco antes do primeiro aniversário da Companhia. Os dois oficiais foram removidos do 11° Batalhão, em Barra de São Francisco, para que implantassem em Pinheiros a mesma metodologia de trabalho que haviam testado com êxito no Noroeste.
“Nesses quase três anos que estamos ã frente do comando, Pinheiros passou um período de 194 e de 166 dias sem homicídios, antes desse recorde de 200 dias”, disse Prates.
Do ano de criação da Companhia, em 2021, para o fechamento do ano de 2024, houve um aumento de 46% no número de detenções e prisões efetuadas, de 560 para 819 pessoas detidas.
O número corresponde a 1,4% da população da região coberta (Pinheiros, Montanha, Mucurici e Ponto Belo), que é de 57 mil habitantes.
PICOS
Os anos de 2012, 2012 e 2013 foram os piores da história, com um pico impressionante de homicídios, totalizando 109 no total dos três anos, e pico de 38 em 2012.
Foi quando se montou uma força tarefa no Tribunal de Justiça do ES (Operação Siroco) com foco na microrregião Nordeste para conter a onda de crimes, alcançando também Pedro Canário.
Por sua localização geográfica, no centro da região Norte, com acessos em todas as direções levando a rodovias federais e aos estados vizinhos de Minas e Bahia, Pinheiros tornou-se estratégica para organizações criminosas.
Nos anos 90, a Polícia chegou a identificar arremessos aéreos de fardos de drogas em meio a plantações agrícolas da região, onde também um grande produtor de frutas e pimenta-do-reino foi preso e condenado, por tráfico internacional de drogas, flagrado enviando cocaína de navio para a Europa.
O empresário, conhecido como Toninho do Mamão, foi preso pela Polícia Federal no dia 9 de março de 1995. Na época, ele era dono de uma empresa de exportação e importação.
Para a Federal, a empresa servia de fachada para o tráfico internacional de cocaína. Supostamente, a empresa dele vendia pimenta do reino.
O produtor e empresário (que morreu em 2012) foi preso com 630kg de cocaína que seriam embarcados para Bruxelas em contêineres escondidos em um carregamento de pimenta, no antigo Cais de Capuaba, hoje Porto de Vila Velha.
Outros 30kg foram apreendidos por agentes federais, um dia depois, enterrados no meio de plantação de pimenta do reino na fazenda do empresário, em São Mateus. Junto com ele foi preso também um holandês.
CONTROLE
Quando a 19ª Companhia Independente criada, em 2021, Pinheiros registrou 19 homicídios e nos anos seguintes 13 (2022), quatro (2023) e 07 em 2024.
“Em 2023 nós atingimos o segundo menor número de homicídios da história da região: oito. Já esperávamos o aumento que foi registrado em 2024 para algo próximo da média histórica em torno de 20 homicídios. Foram registrados 18. Raramente, Pinheiros ficava abaixo de dois dígitos”, disse Prates.

ESTADO PRESENTE
A criação da 19a Companhia foi uma decisão técnica no âmbito do Programa Estado Presente, implantado em 2011, interrompido no período 2015-2018, com a mudança de gestão do Estado, e retorno em 2019.
Para evitar novas dissoluções de continuidade, a Assembleia Legislativa do Espírito Santo tramita um projeto de lei do deputado Mazinho dos Anjos(PSDB) para tornar o Estado Presente um programa de Estado e não de governo.
Se não tivesse nenhuma outra virtude, o programa já teria tido o mérito de integrar as polícias estaduais (Civil, Militar, Penal e Técnico-Científica), tornando as ações de segurança mais assertivas.
O Estado foi dividido em cinco Regiões Integradas de Segurança Pública. Dentro delas, subdivisões em Áreas Integradas de Segurança Pública.
O resultado só não é melhor porque há uma grande defasagem de contingentes que o programa vai, com planejamento, buscando suprir.
“Nem todas as AISPs são coordenadas por Batalhões. A AISP 20 (Viana), por exemplo, é composta por uma Companhia Independente, assim como a de Pinheiros”, explicou Álvaro Duboc, secretário de Estado de Planejamento e coordenador do Estado Presente.
“O objetivo é dar mais autonomia aos gestores locais para estabelecer as diretrizes operacionais integradas”, acrescentou.
INFLUÊNCIA
Assim como o Estado se articula para garantir o desfrute de áreas públicas pela sociedade, o crime também se organiza para garantir controle de territórios para movimentar seus negócios ilícitos.
Enquanto o Estado tem regras legais para agir, o crime organizado cria suas próprias leis para desenvolver seu negócio – geralmente, pela imposição do medo à população e pelo poder da bala com seus concorrentes ou aqueles que contrariam seus códigos.
Usuário que não paga a droga que adquire é, sumariamente, executado. A mesma regra vale para os pequenos vendedores (que costumam vender para sustentar o vício) que não pagam, ou mesmo os médios que dão “banho” na organização.
O crime faz de tudo para expandir seus domínios, avançando sua fronteiras com pontos de distribuição de drogas – embora hoje não se limite a isso, mas também a transportes clandestinos, serviços de internet, bebidas e cigarros ilegais, contrabando de mercadorias e gente.
Cada vez que o cidadão utiliza algum desses “serviços alternativos” está alimentando, na ponta, a cadeia que os administra, geralmente em cima de onde o Estado deixa brechas.
Pequenas cidades, onde todo mundo se conhece e vive sossegado, por exemplo,.começa a ter a paz perturbada, como acontece mais recentemente com Mucurici e Ponto Belo, cidades-irmãs, com cerca de 6 mil habitantes cada.
As duas cidades do extremo Norte capixaba passaram até anos sem homicídios, mas em 2024 e 2025 começaram a ver a volta da violência.
E há um detalhe até curioso nisso. “Ponto Belo piorou por conta da desarticulação do principal grupo responsável pelo tráfico de drogas no município. Em 2023 foi feita a prisão de vários integrantes de um grupo criminoso e isso acabou por provocar um vácuo no poder local”, explicou o capitão Prates.
“Montanha sofre influência da zona de tríplice divisa de estados(ES, MG e BA), já Mucurici – acrescentou -, é por influência da dinâmica criminal de Nanuque” (cidade mineira de 40 mil habitantes, na tríplice divisa, com forte atuação e disputa territorial entre duas organizações: Comando Vermelho e Terceiro Comando Puro, ambas com origem no Rio de Janeiro.
DEMAIS CRIMES
O combate ao tráfico de drogas, porém, anda junto com o enfrentamento de outros crimes associados. Se o porte de até 40g de maconha, por exemplo, não é mais delito penal, roubar ou furtar para alimentar o vício continua crime.
Nos grandes centros, como Rio e São Paulo, o crime organizado “diversifica” suas “atividades” a fim de se capitalizar para investir no negócio principal: a distribuição e venda de maconha, cocaína crack e, em grupos sociais de padrão mais alto, ecstasy e outras drogas sintéticas mais sofisticadas.
Assim é que o CV, no Rio, tem grupos táticos de roubo de caminhões de cargas, mesma coisa do PCC em São Paulo. Além dos negócios com cigarros e bebidas falsificados ou contrabandeados.
Ao mesmo tempo em que atenta ao tráfico de drogas, a Polícia trabalha também nos demais crimes. E tem resultados, altamente, positivos em todos eles.
Roubos de veículos caíram de 71 em 2020 para 14 em 2024, uma redução de 80,3%. Na mesma pegada, os furtos de veículos foram reduzidos em 77,9% – de 68 em 2020 para 15 em 2024.
Em 2018, Pinheiros tinha um índice de roubos a pessoas em vias públicas, proporcionalmente, comparável ou até mesmo maior do que grandes cidades: forem 115. Praticamente um roubo a cada três dias.
Os números despencaram, a partir de 2021, até chegarem a 21 em 224, uma queda de 81.8% – um roubo a cada 17 dias.
A Polícia passou a ter muito maior presença ostensiva. De 4 mil operações anuais na região, passou para mais de 10 mil, um volume quase 150% melhor. A única morte em confronto ocorreu em outubro de 2021, um mês após a instalação da companhia.
“O mérito é da tropa que absorveu a metodologia de trabalho, voltada para a gestão por desempenho e gestão por resultados. A inteligência da unidade atua muito integrada com o setor investigativo das Delegacias de Pinheiros e Montanha”, disee Prates.
DE ONDE VEM
Mas, se o Brasil não produz a matéria-prima, de onde sai tanta cocaína? O Brasil produz maconha, mas não com qualidade e quantidades suficientes para o crescente mercado.
Produzida a partir da folha de coca, planta cultivada nos altiplanos dos Andes e usada pelos nativos como antídoto para os efeitos da altitude, mascando a folha ou fazendo chá por infusão, a cocaína entra no Brasil pelos buracos nas fronteiras terrestres, aéreas e aquáticas.
A tecnologia industrial descobriu que, mediante o processamento das folhas de coca, seria possível produzir um pó branco que, presente na corrente sanguínea, injetada ou inalada para, em contato com os microvasos das narinas, ganhar o mesmo caminho, produziria uma sensação estimulante e de euforia.
Logo as classes abastadas da rica sociedade americana pressionaram a demanda com o seu uso recreativo, o mesmo na Europa e outros países desenvolvidos, e a oferta de cocaína, a droga, passou a se constituir num negócio capitalista como outro qualquer – só que ilegal é com altíssima rentabilidade.
O vício ganhou outros continentes e o negócio do tráfico de cocaína tornou-se um dos mais prósperos do planeta. Como é ilegal, fez surtir os grandes traficantes (comerciantes) internacionais, como atravessadores a partir de países produtores.
Foi assim que países como Peru, Bolívia e Colômbia (do Paraguai sai também a a maconha) tornaram-se famosos como fornecedores mundiais, sendo que na Colômbia surgiram os grandes cartéis que projetaram seu personagem mais importante, Pablo Gaviria Escobar.
Católico fervoroso, edipiano, conhecido bem-feitor de comunidades desassistidas de Antioquia, o Estado onde fica a grande cidade de Medellin, Pablo coordenou a grande cruzada que corrompeu funcionários públicos, comprou eleições de conservadores e liberais, desafiou o poder das nações, inundou a consumista sociedade norte-americana de cocaína, e morreu pelas mãos da Polícia aos 44 anos para eternizar o mito.
Tornou-se Pablo tão poderoso e plenipontente que não apenas passou a matar seus irmãos de cartéis, assim como foi morto por eles (os PEPs) em comunhão com o poder público.
Assim como para muitos colombianos Pablo não morreu na sua memória, o mito também prevalece. Hoje, muitos colombianos vivem do que chamam narcoturismo, vendendo todo tipo de lembranças com o rosto de Escobar.
O túmulo do narcotraficante é o mais visitado no cemitério de Medellin. Mais de 30 anos depois, a indústria que ele, de certa forma, inventou, continua movimentando possíveis trilhões de dólares no mundo inteiro.
Alimentada por quem? Pelo consumidor final, aquele mesmo que vai ali no pé do morro ou entrada de bairros vulneráveis da cidade receber, das mãos de meninos e meninas miseráveis, o papelote de pó que vai levar-lhe à próxima “viagem”.
Quanto àquele ou àquela que lhe entregou o “bilhete da viagem”, talvez esteja na capa dos sites do próximo dia, com o corpo estendido no chão, ou no “cofre” de alguma viatura policial a caminho de seu suplício vivo. (José Caldas da Costa, Da Redação)
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